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C.Caç. 2381 - OS MAIORAIS




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… E CINQUENTA E UM ANOS JÁ SE FORAM!

Parece que foi ontem, mas já lá vão cinquenta e um anos de vida. A nossa chegada a Bissau deu-se a 6 de Maio de 1968. sabemos que pelo menos 37 dos nossos já partiram para a outra vida. Muitos, nunca dram sinal de vida, o que é compreensível, pois a guerra deixou-nos marcas dolorosas difíceis de apagar; alguns, já não se sentem com coragem para "fazerem" os quilómetros que nos separam, para se juntarem a nós neste dia de convívio anual, outros, a doença que os corrói impede-os de se juntarem a nós. Mas ainda há alguns, muitos, que aí estão todos os anos para o fraternal abraço, dois dedos de conversa e um almoço bem servido.

Desta vez, paramos na Quinta do Codorno, nos arredores de Alenquer. estava um lindo dia de sol, um dia propício para trinta e três Maiorais e suas famílias num total de 73 convivas, se juntarem  para conviverem e marcar novo encontro para o ano que vem.

Em 2020 comemoramos cinquenta anos de regresso, que se concretizou no dia 9 de Abril de 1970

O Encontro comemorativo será no mesmo local, ou seja, na Quinta do Codorno em Alenquer, no dia 18 de Abril de 2020.

Contamos com o esforço de todos os Maiorais que têm resistido ao tempo para estarem presentes com o seu grito de vida

José Teixeira(Enf)


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EM DEBATE - Espaço aberto

ESPAÇO ABERTO PARA DEBATE DE IDEIAS.


 A guerra colonial acabou já lá vão uns anos. As causas da mesma e sobretudo as suas consequências, continuam a ser uma razão de debate e descoberta.


Este espaço pretende ser uma porta aberta para todos os ex-combatentes da Guiné, de ambos os lados, exporem as suas ideias.


Tu, que nos estás a ler, és convidado a participar. Apenas se pede contenção na linguagem e respeito pelas opções politicas de cada um, reservando-se o administrador do blogue a não introduzir eventuais textos que não obedeçam a estes princípios. Escreve para: jteixei@msn.com


 Nota do editor: É expressamente probido copiar ou publicar em todo ou em parte, qualquer dos textos editados neste blogue, sem autorização do editor


 MILICIAS E SOLDADOS GUINEENSES AO SERVIÇO DO COLONIALISMO


Nas poucas vezes que tenho revisitado o meu querido Portugal nestes  anos de um misto de exilado –e migrado (exigrado)surpreendo-me sempre com a quantidade de Guineenses que encontro no lisboeta largo do Rossio e por este País fora.


 Quem são estes homens?


 Quem"foram" estes homens?


Que histórias existem por de trás os grupos que conversam, partem “mantanha”, ou, sentados nas escadarias do teatro D. Maria têm os olhos perdidos em horizontes distantes?


Restos humanos arrastados para estas paragens distantes pelos maremotos da história colonial?


Que solidariedade sentem por parte dos seus antigos companheiros de armas?


Compartilharam connosco todos os perigos. Todos os "roncos". Sofreram ao nosso lado inúmeros mortos e feridos. Nos rebentamentos de minas misturámos, literalmente, o nosso sangue. É difícil negar, que eles, estavam sempre nos lugares mais perigosos da luta. Á frente das colunas.Á frente dos grupos de assalto. Á frente de muita tropa branca,ensinando na prática, o que as instruções em Portugal tinham......esquecido! Muitos de nós,estamos vivos graças a alguns deles (há, isto de esquecimentos .. convenientes!)


Com o passar dos anos, e o enorme coração português, as realidades cruas da infernal guerra colonial, são, lenta e insinuosamente, substituídas nas nossas recordações, por tonalidades mais lusitaneamente romantizadas.


Nos nossos verdes vinte anos de idade confrontámos a África. No exotismo dos costumes, da natureza, das doenças tropicais, tudo somado ao choque violento das inesperadas confrontações com a morte, os feridos, os amputados, e os psiquicamente destroçados.


Quantos dramas tivemos que saber suprir?


Quantas terríveis experiências pessoais? ....... As consequências?.............


Acabámos por não ter "tempo - espaço" para dar toda a devida atenção ao drama paralelo que era a cara verdadeira da Administração colonial. A exploração! A opressão! A violência! Sempre latentes por detrás dos Chefes de Posto, dos Cipaios, da Polícia do Estado, e mesmo de alguns comerciantes - colonos, que ainda por lá parasitavam!


Quantas preponderâncias?


Quantas opressões?


Quantos crimes cometidos à sombra de convenientes ...denuncias?


Nós, na ingenuidade das nossas juventudes, hasteávamos respeitosamente a Bandeira Nacional nos aquartelamentos. (as histórias que então me contaram sob as compras de mancarra por parte de alguns comerciantes de Ingoré, fariam sofrer de inveja muitos dos latifundiários do nosso Alentejo de então)


Era este o "meio" de onde acabavam por surgir os voluntários para as milícias, e posteriormente, para as tropas africanas. O Estado Português, o Exército, a Administração local, seriam os responsáveis pela propaganda. (Não era essa a função do Otelo numa das repartições do E. M. em Bissau?).


Tudo devidamente acompanhado de incentivos económicos e sociais.


Mas, em verdade, a ESCOLHA pertencia aos voluntários.


A alternativa encontrava-se no mato.......a bem poucos metros de distancia........ do outro lado do arame farpado! Lutavam, tanto do lado colonial, como no Movimento de libertação, representantes de TODAS as etnias da Guiné.


Procurou-se assiduamente criar condições para motivar etnias completas a mudar de campo. Nunca se conseguiu criar, na generalidade, fronteiras rácicas entre os combatentes. Nalgumas zonas as percentagens variavam acentuadamente, mas nunca foi uma guerra entre etnias na sua totalidade.


Não era por acaso que a organização política e militar do PAIGC, sem esquecer a sua fundamental componente das relações internacionais, era uma das mais eficientes, e respeitada, de entre os movimentos de libertação.


O descalabro da então apregoada "descolonização - exemplar",não a ideal........mas a possível! ............. mais não foi que uma consequência directa do contexto político existente, e não menos.........do "herdado".


Os esforços de poucos, quanto a assumir responsabilidades para com estes guineenses ao serviço da política colonial não foram, obviamente, suficientes para os proteger.


Muito se poderia escrever, e se escreverá, sobre os esforços, e diligências concretas, (documentadas) por parte do Carlos Fabião sobre o assunto. Na sua passagem de mais de uma década pelo mato da Guiné, ele, melhor que ninguém, estava ligado, de raiz, à criação das milícias e sua problemática. Criei com ele, amizade pessoal, desde o tempo em que este comandava o sector operacional de Buba, o que me veio a permitir ,nos anos 74/75, colocar-lhe algumas perguntas pertinentes sobre o que se poderia ter feito....o que se não fez.......e o que, na verdade se procurou fazer.


Verifica-se, infelizmente, que dos interessados nos factos relacionados com as mortes destes africanos, uns, colocam as suas pré-ideias à frente do que realmente se procurou fazer.


Outros, procuram analisar este período tão caótico........com o coração! Há, no entanto ,alguns factos - reais, e importantes, que ainda não consegui encontrar no que de muito se tem escrito sobre o assunto. Quer se concorde, ou não, os acontecimentos pré - revolucionários(?) que então se sucediam em Portugal, não eram conducentes a permitir o desembarque em Lisboa de umas boas centenas de (o que de logo seriam apelidados por certos grupos)......mercenários, e criminosos, ao serviço (passado) do colonialismo......e, a serem utilizados num futuro próximo........POR QUEM?


O exemplo concreto do passado com o tão medalhado Marcelino da Mata, nos acontecimentos do RALIS, deu uma boa amostra desta realidade, para muitos.......incómoda de enfrentar.


Por outro lado, países africanos contactados, recusaram terminantemente, como seria de esperar, a receber estes colaboradores activos do colonialismo português. E, não menos importante, mas por muitos "esquecido"...O voluntário, imediato, e espontâneo cessar fogo por parte de algumas das guarnições portuguesas no mato da Guiné, o que veio a colocar umas boas centenas de soldados, na posição de reféns, de facto, das forças locais do PAIGC. Uma, lògicamente, muito complicada situação no terreno, para permitir estabelecer......exigências! As execuções, os fuzilamentos, e alguns massacres acabaram por acontecer. Uma prolongada guerra de libertação nacional, com sacrifícios indiscutíveis por parte dos guerrilheiros e seus apoiantes, criava condições mais que suficientes para um........ajuste de contas........com os que tinham as mãos bem manchadas por tanto sangue de guineenses.


Como português, não sinto orgulho no sucedido a tantos destes africanos que lutaram lado a lado (e tantas vezes--Á FRENTE!) das nossas tropas. Por respeito a todos os que lutaram, e lutam, pela liberdade dos povos, (incluindo o meu, na sua já bem longa História de séculos)recuso-me a romantizar, ou menosprezar, a ESCOLHA que esses guineenses efectuaram. Á luz da História, e dos direitos do Homem, foi uma escolha .........errada!


Stockholm/2007.Joseph Belo


SUBLIME ATITUDE DE AMOR


Equacionar, no tempo, os efeitos nefastos de uma guerra não desejada pelo povo, como todas as guerras o são, mas muito especialmente esta em que fomos envolvidos, era até agora para mim:


 a) Os milhares de mortos, na flor da juventude, entre os militares envolvidos de ambas as partes da contenda, arrastados, uns pelo dever patriótico de defender a autodeterminação e independência da sua terra face a um dominador estrangeiro que pelo facto de ocupar há umas centenas de anos pela força do poder, se julgava rei e senhor e os outros, arrastados por uma máquina poderosa do Estado que se alimentava na ideia de não querer perder um território que afirmava ser seu, remando contra ventos e marés que o mundo moderno rejeitava.


 b) Os milhares de mortos duplamente inocentes entre as populações que se contabilizam em crianças, mulheres, velhos e população activa, quantas vezes barbaramente assassinados, como eu mesmo pude testemunhar, com raiva. Vítimas que viviam envolvidas entre dois fogos, arrastados e divididos por duas correntes de patriotismo opostas que se degladiavam, sem sentido lógico. A sua pátria era a Guiné, está hoje mais que provado. Quantas famílias divididas, pais para um lado, filhos para outro. O Kebá, meu ajudante de enfermeiro, recusou-se a entra na milícia e não me acompanhava nas saídas para o mato. Um dia após insistência de minha parte, abriu-se a contar a sua história. Duas das mulheres que tinha estavam do outro lado da guerra, com alguns dos seus filhos. Ele optara por ficar em Empada e um dia fugiu e foi procurá-las com o objectivo de as fazer regressar, correndo o risco de ser apanhado entre dois fogos. Regressou de mãos vazias, pois elas recusaram a ideia. Fixou-se de novo em Empada, onde tinha terceira mulher com seus filhos. Da base do PAICG de onde elas se encontravam, algures nos arredores de Empada, partiam os guerrilheiros que nos atacavam, pelo que mais de uma vez ouvi o seu desabafo, após a refrega. “Hodje minha fidjo ê mudjer di mim vem visita a eu” . O Kebá que tive o prazer de rever em 2005, alegre e feliz, agora com toda a sua família junta.


c) Os estropiados, entre militares e civis que sobreviveram. Vitimados por uma guerra suja de matas ou morres, quer a razão (se é que alguma vez houvesse razões lógicas, que justifiquem uma guerra) pendesse para um ou outro lado em função da noção de patriotismo inculcada pelos ideológicos. Sobretudo os civis que eram apanhados entre dois fogos, numa guerra sangrenta e suja de que procuravam fugir para sobreviver. Hoje quantos deles na extrema miséria por incapacidade física ou mental de se organizarem para ganhar o pão de cada dia, ou então apoiados por familiares que têm de repartir o magro salário, se é que o usufruem, por mais uma boca que pede pão. Registe-se as vítimas de stress traumático que não são tão poucos como parece, de parte a parte pois quase não se fala deles. Terrível doença que aniquila a personalidade do individuo, tornando mero ser vegetativo, dependente e de sociabilidade complicada, que causam terríveis problemas à família, ou se isolaram e vivem como párias, perdidos sem nexo, numa vida de que perderam o sentido.


d) As viúvas na flor da idade que de um momento para o outro se viram sós, sem o seu amado. Os projectos de vida perderam-se para sempre. O recomeço, se o houve, quão difícil foi.


e) Os pequeninos órfãos que muitos nem chegaram a conhecer o seu pai.


f) Os pais que geraram e criaram com amor e carinho seu filho, para o entregarem à Pátria em holocausto não desejado, nem consentido. Ficou a dor eterna da perda, que fez muitas mães, sobretudo, perderem a alegria de viver.


g) Nós todos, os antigos combatentes, com as marcas, sonhos terríveis que nos atormentaram e continuam a atormentar que nos ficaram em resultado de cenas vividas e não desejadas e muitas vezes não admitidas pelo nosso inconsciente, em resultado de uma educação que nos tinha sido dada, sobretudo pelos pais e pela influência da religião que professávamos. Marcas essas que agora com o envelhecimento estão a vir ao de cima.


No meu caso, sonhava continuamente com a Guiné do arame farpado. Sonhava com um povo tal como o conheci, fechado nas suas tabancas envolvidas em arame farpado, cheio de medos de um inimigo que afinal já não existia, mas que as informações que nos chegaram nos primeiros tempos de independência, quanto a mortes e perseguições a antigos combatentes, nossos companheiros de jornada, alimentavam este meu drama.


Só em 2005 quando tive a felicidade de lá voltar numa romagem de saudade, pude fazer as pazes comigo mesmo e afastar fantasmas que me perseguiam. Ora, nunca pensei que também havia as Marias [que perderam amigos ou namorados, na guerra].


A coragem de uma mulher, casada, com filhos e netos, que nunca esqueceu o seu namorado falecido em combate ao aparecer na NET a solicitar informações sobre a forma como o seu sempre querido, morreu, apesar da volta que teve de dar à sua vida, arrastou à minha memória tantas jovens raparigas que viram partir os seus amores para o desconhecido de uma guerra num país lá longe, em África, que os mentores da ideologia política reinante afirmavam ser parte da nossa Pátria e que era preciso defender de ambiciosos estrangeiros.


Os contornos e efeitos dessa guerra eram-nos subtraídos, apenas pequenos e lacónicos comunicados com o nome dos mortos e os caixões com falecidos em combate, que as famílias com algumas posses conseguiam resgatar, eram sinais visíveis de que a guerra era a valer.


Juntavam-se os discursos inflamados no 10 de Junho, para alimentar a plebe. Feira de vaidades que permitia aos Chefões tirar do guarda-fatos as vestimentas de gala e passeá-las pelo Rossio.


As jovens namoradas sonhavam com os seus amados, pintavam o futuro com os tons mais negros. Agarravam-se à esperança de que o seu ia ter sorte e voltaria são e salvo. Quantas se escondiam do mundo, dos prazeres que o quotidiano da vida lhes podia proporcionar, vestiam-se de escuro. Refugiavam-se no apelo ao seu Santinho predilecto à Virgem de Fátima e aguardavam em silenciosa esperança o regresso do seu amor que o tempo teimava em manter afastado.


Nem a todas a sorte foi madrinha. Muitas unidas já pelos laços matrimoniais e com filhos, não voltaram a ver o seu amado. Outras transformaram-se em viúvas virgens.


 Uma bala assassina, enviada não se sabe por quem, um estilhaço de uma granada, roubou-lhes o que de mais belo possuíam, o sonho de construírem uma vida, um futuro em felicidade com aquele a que de alma e coração se entregaram por amor. A vida a que tinham direito. Eles, ficaram pelo caminho, esmagados por sofrimentos terríveis ou . . . sem saberem de que morreram.


Elas, tiveram de ganhar novas forças e recomeçar caminhos novos, passado o choque inicial, o sofrimento da perda que acreditava eu com o tempo se tinha esvaído num passado para esquecer. Anos de vida que se perderam, momentos felizes da vida que teimavam em manter-se no sótão da memória, marcas com muito custo afastadas.


Este e outros casos levantam, para mim, um novo drama, que sinceramente pensava que já tinha sido abafado. A fidelidade, mesmo quando factores da contingência da continuidade da vida obrigam a mudar de rumo, lá dentro fica para sempre a mágoa do amor que se foi de forma tão brutal e inglória. Drama que talvez, muitas outras mulheres mantenham vivo e silenciado, na dor e na raiva pela perda de uma vida a dois que legitimamente sonhavam e perseguiam com esperança e se esfumou num abrupto e seco telegrama a anunciar a morte "ao serviço da Pátria" do seu amado


 (3). Às Marias de Portugal eu quero dedicar dois poemas que escrevi em tempos de guerra e que reflectiam o meu estado de alma


AMOR EM TEMPO DE GUERRA


Ver-te chegar à minha vida, amor,


É sofrer.


Por saber que para a guerra vou.


 Dizem que a Pátria me chama.


Já cá não estou para a semana.


Tu que nesta aventura quiseste entrar,


Acreditas no futuro ?


Estranha forma de amar.


 Estranha forma de ser.


A razão do meu viver.


De lutar


Para voltar direito, Escorreito.


Voltarei.


Gritei, na despedida, lembras-te ?


Quando o comboio apitava,


Um corpo morto ele levava,


Ficava contigo o coração.


Sentado no degrau da Estação,


Enquanto me interrogava.


Que mundo vou conhecer ?


 Que Pátria vou defender ?


Será que terei de matar para viver ...


E regressar Direito. Escorreito.


Estranha forma de ser.


O desafio aceitar.


 Dois anos tu vais ficar,


Tu e eu a sofrer.


Ambos vamos sonhar.


Estranha forma de amar.


A razão do meu viver,


De lutar para voltar Direito. Escorreito…


Zé Teixeira


A CARTA QUE NÃO ESCREVI


 (Dedicado ao camarada Mário da Conceição Caixeiro que morreu sem eu lhe poder valer) (2)


 A carta que escrevi,


Não escrevi.


Ao seu destino chegou.


Atrasada.


No avião seguia, quando morri,


 Levou-me o sopro de uma granada.


 Dizia eu que estava bem.


 Era verdade.


 A guerra estava parada.


À vista o fim da Missão,


Servir a Pátria amada.


Cantava.


Cantava de alegria,


Afastava a solidão,


 O medo, a angústia, o desejo de voltar.


E veio a granada para me matar.


A notícia voou rápida,


Para ferir.


Levou à minha amada


A dor de me ver partir,


Sem me despedir.


A carta.


Juro que a escrevi,


Mas não escrevi


Porque morri.


Sei que a leste


Com que fé, amor !


Esperança danada


Que fez esquecer a dor,


Da mensagem levada Pelo Crocodilo lacrimado,


Com o resto da minha granada, medalhado.


 Eu estava.


 Mas não estou.


 Quando cantava A morte me levou


 E a minha carta Para ti,


Amor,


Viajava,


levando a esperança Que acabou.


Zé Teixeira


COMANDOS AFRICANOS ABANDONADOS À SUA SORTE


 Os comandos Africanos do exército português foram abandonados à sua sorte, quantos deles foram barbaramente assassinados pelo PAIGC.


Todos nós que por lá passamos, vimos, ouvimos e até lemos os actos “heróicos” que os comandos e os soldados da milícia africanos cometeram contra os seus irmãos.


Eles gabavam-se, mostravam os seus trunfos de guerra ( orelhas, cabeças, roncos, etc) e quantos de nós batiam palmas e incentivavam. Era menos um inimigo, mais uma chance para nós, que queríamos voltar sãos e salvos. Esta é a verdade.


No meu “diário” expressei o horror que senti, quando o já falado Candé, Alferes comando que chefiava o grupo que estava estacionado em Aldeia Formosa, num encontro com o IN, que tinha emboscado a minha Comp. apareceu com as orelhas dos IN que o seu grupo tinha abatido.


Foi um choque horrível para quem estava há 3 meses na guerra. Certo é, que com o grupo do Candé no terreno nós sentíamo-nos mais seguros e o IN mantinha distância.


Creio que se o Comandante da força estacionada, ou o Comando Chefe de quem diziam dependia directamente, não alimentasse com alvíssaras estas atitudes ou as reprimisse por não serem de modo algum enquadráveis na Convenção de Genebra, o Candé teria de tomar outra atitude. Isto é, ele e o seu grupo foram treinados e instrumentalizados para cometer actos indignos do ser humano e eram pagos para isso.


Quantos de nós ( não pretendo acusar nem desculpabilizar ninguém) fomos levados a cometer actos dos quais, após a terminar da Comissão e regressados sãos e salvos sentimos quanto fomos instrumentalizados para o fazer ?


 Quantos de nós, pessoas de bem, educados numa religião que premeia a paz como objectivo, nos dispúnhamos apenas a tentar safar a pele, logo evitar fazer guerra, quer dizer matar para sobreviver e face ao perigo, reagíamos de forma tão diferente, forma que desconhecíamos em nós e nos tornávamos insensíveis ao sofrimento e à dor que poderíamos provocar ?


Quantos de nós, apolitizados, víamos a ida para a guerra como uma missão patriótica a cumprir cegamente ?


A Pátria chamava . . . A quem culpabilizar ?


A quem desculpar ?


O ambiente gerado e bem alimentado pelo poder politico militar de exploração da divisão étnica dos autotenes resultou em crimes graves de parte a parte.


Não creio que o PAIGC, fosse mais meigo, quando apanhava comandos ou milícias africanos. Não está em causa desculpabilizar os actos cometidos por essa gente, como não podemos culpabilizar os actos condenáveis pela Convenção de Genebra, (que creio só poucos de nós à data tinham conhecimento) cometidos por camaradas nossos sem causa justa ou seja sem que fosse em legítima defesa.


Todos sabemos que quando se entrava numa tabanca considerada IN, tudo o que aparecesse à frente era IN para abater e era ronco, enviar no comunicado para o Comando Chefe, tantos IN abatidos. Mulheres, crianças, velhos, homens desarmados. Quantos ?


Eram colegas nossos, a quem lhes fora inculcado que eram filhos da mesma Pátria, embora o poder político, sempre os considerasse e tratasse portugueses de segunda, o que a meu ver não pode ter perdão.


Combateram a nosso lado, quantos de nós lhe devemos a vida. A sua prática e conhecimentos de guerra, o conhecimento do terreno, das armadilhas que o IN colocava, a temeridade que provocavam ao IN, foram ou não factores que nos facilitaram o regresso ?


Por esta razão se mais não houvera, não podiam ser abandonados à sua sorte, sabendo os nossos comandantes, seus ordenantes, que, naturalmente, ficariam com a cabeça a prémio.


O esforço que se fez e o mérito para o Carlos Fabião, foi demasiado pequeno para quem tanto deu a Portugal.


Tenhamos consciência, no entanto, que quem estava na frente da guerra eram os milicianos, gente que de algum modo estava forçada e logo que vislumbrou uma frecha para eliminar o perigo de morte para os seus homens, baixou os braços, entregando o seu espaço de manobra ao até então IN, agora companheiro.


Há quem chame a isso cobardia, sobretudo os saudosos do passado. Eu que vivi uma guerra com o propósito de não dar um tiro e consegui-o, tendo por isso já ouvido essa palavra feia de “cobarde”, consciente da realidade no terreno, aceito essa atitude como um acto normal de quem não queria fazer guerra e tinha sido empurrado para ela.


As altas esferas militares e politicas, os dos gabinetes com ar condicionado, os responsáveis que aplaudiam e alimentavam os seus actos, esses sim tinham o dever de acautelar as vidas e o futuro desta gente generosa. Creio que faltou a comunicação, o diálogo com as nossas forças no terreno, já que o sistema implantado até então, de “ordens de comando”, com a queda do regime, se esfumou. Foi um “salve-se quem puder”.


 Os grandes foram os primeiros a dar o “pira” à procura de novos tachos. Os desgraçados que não “puderam”, que não tinham para onde ir, esses pagaram caro. Para muitos a fuga para o mato, para o Senegal na tentativa de “agarrar Lisboa”.


Outros ou não tiveram tempo, ou acreditaram nas falinhas mansas do lobo. Pagaram com a vida. As vidas que nós, os antigos combatentes, agora choramos e lamentamos. A culpa, aqui não morreu solteira.


São o Estado Português e o PAICG.


O PAIGC, servia-se, a meu ver, exactamente das mesmas técnicas, em que a exploração da divisão étnica era naturalmente alimentada.


Tal como Portugal, controlava as tabancas nas suas áreas de influência e condicionava os habitantes. Servia-se destes, desde a produção de produtos alimentares para os guerrilheiros, o transporte de equipamento, para os ataques, o arrebanhar de crianças e jovens para as suas fileiras, tal como nós com a milícia e os Comandos africanos.


Era uma terra dividida.


De qual lado estavam os bons ou os maus ?


O diabo que escolha!


O ódio era alimentado e explorado por todos os comandos das forças no terreno. Era a guerra.


Nós, os Portugueses, de um momento para o outro parámos.


 Esta guerra perdera toda a razão de ser.


Não tinha lógica, era contra natura.


O PAIGC, entendeu esta atitude como uma derrota nossa, logo uma grande vitória, o que não foi verdade.


Assumiram-se como vencedores e “ai dos vencidos “ como diziam os romanos.


Os seus “heróis” apareceram na ribalta como “os novos senhores”. A sua “verdade” era a única possível.


Os seus conhecimentos de gestão política eram nulos, para não falar na económica e na social, que talvez nunca tinham ouvido falar.


Eles não acreditavam numa vitória tão fácil. O poder caiu-lhe nas mãos. Tinham a obrigação de procurar entender o povo que se colocou na outra banda da barricada, eram seus irmãos de pátria. Da Pátria que afirmavam querer construir. Não eram os seus heróis, bem pelo contrário, mas eram parte do seu povo.


Podiam proceder a julgamentos e eventualmente condenar, pois os crimes praticados foram realidades concretas, mas . . . ( O raio do “mas” aparece sempre)


Quantos dos vencedores estavam e estão isentos de culpas ?


Quantos dos seus homens, senão eles próprios, não cometeram actos idênticos ?


Não posso aceitar, julgamentos sumários sem defesa, ou condenações à morte sem julgamento. Foram assassinatos puros, quantos deles de forma violenta como a do Candé de Aldeia Formosa. Foram perseguições às famílias dos que se refugiaram no mato ou no estrangeiro. Foi a caça ao homem, meu irmão. Como gostava de reencontrar hoje o Candé, como encontrei o Braima, Kebá o Usemane e tantos outros que combateram a meu lado, que me defenderam a vida.


Como gostava de reencontrar o Abdulai Djaló de Mampatá Forea, com quem passei noites em conversa até adormecer na sua esteira, eu, ele e a mudjer dele. Sei que fugiu para o mato com destino ao Senegal. Nunca mais se soube onde foi parar. Há tantas coisas em comum para partilhar.


Creio que era a melhor forma de afastarmos os fantasmas que povoam o nosso imaginário.


 Zé Teixeira


O SALVATERRA BERNARDES


Era cedo.


Uma daquelas manhas geladas, húmidas, cinzentas, dos Invernos de Abrantes.


O Pelotão ia formando na parada para mais um dia de instrução enquanto se Aguardava o embarque para a Guiné. Um dos Furriéis dirigiu-se para mim, acompanhado por um Soldado.


Meu Aspirante, este é o Salvaterra! Apresentou-se ontem. Faz parte da Companhia e foi colocado no 2º Pelotão!


Olhei-o pasmado.


Á minha frente estava o que aparentava ser uma figura de comédia.


Uma caricatura barata de Soldado. Desde o "quico”, às botas, do cinturão à G-3,tudo nele estava mal vestido,"mal assentado". Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.


Tentei, com a ajuda do Furriel, melhorar, dentro do possível, todo o caos que era o fardamento do Soldado. Foi o nosso primeiro contacto!. A partir daí, o Soldado Salvaterra tornou-se no involuntário "palhaço" do Pelotão.


Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços, e muito menos, com o movimento das pernas.


Na "ordem unida" tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía, desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada!


OS ANOS SESSENTA!O período em que nas escolas, jornais, televisão e rádio, nos bombardeavam com o Portugal do Minho a Timor.


Dos terroristas fanáticos, que pretendiam destruir a civilização Cristã - Ocidental em Africa, subvertendo os bons nativos resultantes de séculos de Portugalidade - missionária!


O período em que Camões foi apropriado para ser usado, e abusado, como bandeira da......Lusitaniedade! Não o Luís Vaz, exilado, empobrecido---vivendo de amigos---nos extremos do Império. O que nem dinheiro tinha para a viagem de regresso! Mas antes o Luís de Camões! Sacro! Divinizado de espada em punho.....e Lusíadas debaixo do braço!


Era o período em que "Os Descobrimentos"e os "descobridores" quase se tornavam conversa de pequeno-almoço em família. Tanto se falava, a nível educacional, e governamental, no Infante D. Henrique que não sobrava tempo para lembrar que o mesmo tinha introduzido a lucrativa escravatura negra na Europa de então, tornando-se um dos mais ricos do Reino.


No Portugal dos anos sessenta quem seriam os Excelentíssimos Membros da Junta Médica que apurou o Soldado Salvaterra para todo o serviço Militar?


Quem seriam os Excelentíssimos responsáveis militares que depois de ....O VEREM...acabaram por o mobilizar como Atirador de Infantaria para a Guiné?


Com essas Excelências, de certo modo, as contas ficaram "provisoriamente" assentes aquando dos primeiros tempos de Abril-74. Mas comigo próprio?


O Aspirante comandante do pelotão em que o Soldado Português - Salvaterra era o MÁRTIR, o palhaço, o momento constante de irritação?


O jovem conduzido, ou melhor, inbuído, a repetir........."gestas de antanho"?


Não era a nossa geração que se apropriava da História; era a História que se apropriava de nós!


Mais do que o remorso e a vergonha, é a pergunta:---Como foi possível que o Aspirante, militarão, ingénuo e estúpido, não tenha então reagido?


Não tenha sequer exigido da parte dos superiores a atenção para o caso do pobre doente que era o Soldado - Salvaterra?


Hoje, olhando-me ao "espelho da memória",o que mais me assusta, é que ,ENTÃO ............... nem sequer me dei ao trabalho de nisso pensar! SOLDADO DE PORTUGAL----SALVATERRA BERNARDES -------- PRESENTE! (O Maioral do 2 Pelotão da Companhia de Caçadores 2381-Salvaterra Bernardes, já faleceu.)


José Belo


 A GUERRA E O CONFLITO COM A FÉ QUE NOS INCULCARAM


Ontem, dia seis de Maio, ao passar na IC1 perto de S. João da Madeira, tive oportunidade de apreciar um espectáculo deslumbrante.


Uma procissão de gente, talvez milhares, que na berma da estrada caminhavam em peregrinação, com destino a Fátima.


Gente nova, menos nova, velhos, mulheres e homens, com bom calçado, de “chanatos” ou descalços. Em grupos organizados, com carros de apoio, ou “colados”. Gente de Fé, caminhava a passo firme e apressado para chegarem a tempo no dia 12 participarem nas cerimónias religiosas.


Alguns em silêncio ( promessa de não falar), outros fazendo alguns dias a pão e água, outros rezando e cantando. Ainda outros em amena cavaqueira com algum conhecido na jornada.


 Movidos por razões de Fé, muitos em cumprimento de promessas, que não podendo aceitar, pois com Deus não se negoceia, não contesto, pois sei que perante as dificuldades, os problemas, e sofrimento, as reacções que a fé imprime a cada um, só ele as sente. Dai o meu o profundo respeito.


Ao apreciar este profundo movimento de Fé, a minha mente saltou para os anos 60/70. Para a minha avó que em 1965, com 70 anos partiu no dia 2 de Maio, de uma aldeia, algures a 40 Km a norte do Porto, com o mesmo destino e os mesmos objectivos. Dar graças a Deus, pela intercessão da Virgem Maria, pelo facto do meu irmão mais velho, ter regressado da tropa sem ter ido “à guerra”. (expressão que ela usava).


Da sua promessa de repetir a façanha, se eu tivesse a mesma sorte e ou pelo menos regressasse são e salvo. Da sua atitude de quando eu parti para a tropa, ir, ao Domingo assistir a duas missas: uma por ela e a outra por mim, pois segundo afirmava, eu era um “bom” malandreco e facilmente me iria esquecer do meu compromisso de cristão. Passou a ser para mim o “meu anjo da guarda” o que muito a envaidecia.


Da sua morte em 1968, quando eu pensava estar quase safo da ida ao ultramar, pois a escola de enfermeiros da incorporação seguinte estava a sair.


Desapareceu o meu “anjo da guarda” e oito dias depois estava mobilizado para a Guiné.


A divagação dolorosa continuou a perseguir-me.


Quantas avós, mães, pais, esposas, namoradas, prometeram trilhar estes caminhos, na esperança de que Deus por intermédio da Virgem os (as) ia atender.


Quantas avançaram até Fátima ou outro Santuário dos muitos espalhados por este País, para mais perto de Deus, aí fazerem as suas orações de acção de graças e os seus pedidos e promessas.


Quando parti para a Guiné, ainda no Niassa, fiquei impressionado ao ver muitos companheiros da viagem com o terço pendurado ao pescoço, qual amuleto ou talismã protector, ou então a medalhinha a quem se dava devotados beijos. Ao chegar à Guiné, mais propriamente a Ingoré, apreciei e comecei a acompanhar um grupo razoável de “velhinhos” que se reuniam à noite no refeitório para rezarem o Terço. Ao qual se foram juntando outros elementos da minha Companhia.


A Fé que me foi transmitida gerava um agudo conflito dentro de mim, pois fora sempre um desafio à construção da paz entre os homens e eu aceitara, como o cordeiro que vai para o matadouro, partir e viver uma guerra que em consciência rejeitava, mas que o dever para com a Pátria (tal como me tinha sido inculcado, quer na escola, quer na família) me obrigava a “fazer” a guerra.


No meu “diário” escrevi um dia: ...Senti mais uma vez a presença do Senhor em mim quando ia na coluna. Muito calmo , com atenção a todos os lados, sempre nos rodados das viaturas para não ser atingido por uma "bailarina". As Vossas orações valem imenso. Quando sinto as balas e granadas passarem por alto pergunto a mim mesmo se não são as vossas orações. Odeio.. Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles... O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores... Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de "bom biaje", se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ? Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN. porque é traiçoeiro,por que mata. O Evangelho foi feito só para brancos ? Como poderei amar os homens onde só existe o ódio !


 Via os nossos soldados, com o “amuleto” do terço, que não rezavam, pois muitos deles eram agnósticos ou as obras que a verdadeira fé exige, era algo que não lhes dizia nada, quando saíam para o mato, beijarem a medalhinha que traziam ao pescoço, ou a cruz do terço, benzerem-se toscamente e darem um beijinho na mão, tal como hoje os jogadores de futebol continuam a fazer e cujo sentido religioso continua a ser para mim um enigma, pois não vem nos cânones nem nos catecismo.


Em Fátima a hierarquia religiosa alimentava a oração e o sacrificio, pela paz no Mundo, em especial na nossa Pátria, fechando-se teimosamente os ouvidos ao troar das metralhadoras, ao ribombar das minas e armadilhas que ambos os contendores escondiam traiçoeiramente e das bombas que os canhões faziam vomitar das suas bocas de fogo, pela acção malévola dos homens e dos aviões que destruíam aldeias completas produções agrícolas e matas, para que o inimigo na sua própria terra morresse se não da guerra que lhe fazíamos, pela fome.


Da nossa banda eram jovens, a flor da nossa pátria que tombava. Os naturais , donos da sua terra, viam quantas vezes, as mulheres, as crianças, os velhos, tombarem debaixo do fogo de uma e outra frente ou devido à fome e miséria a que eram votados, pela acção militar dos portugueses.


E em Fátima continuava-se a rezar pela paz. . . . O próprio Papa Paulo VI, veio a Fátima em 1965, rezar pela Paz no Mundo. Ele que pouco antes tinha recebido os três líderes das frentes de combate, que lutavam da outra banda, pela libertação, dos seus povos. Sinal bem claro de que o mundo cristão estava consciente e reconhecia a existência de uma guerra em que Portugal tentava pela força calar a voz dos povos que em África entendiam que a sua felicidade passava pela autodeterminação e independência.


Os povos que ousavam fazer-nos frente também tinham a “sua Fé”, os seus Santos a quem se agarravam nos momentos difíceis, os amuletos que lhes víamos à cintura. Também tinham avós, pais esposas, namoradas. Algumas, na frente de guerra, combatiam lado a lado, outras na retaguarda, sofriam como as nossas mães, os nossos familiares.


Pensei no Kebá, a quem tive o enorme e gratificante prazer de reencontrar em 2005. Nas duas mulheres que tinha e que fugiram com os filhos ou foram apanhadas pelo IN. O seu esforço para as recuperar, entranhando-se na mata entre dois fogos para as localizar. O desgosto por elas não aceitarem segui-lo no seu regresso a Empada. A sua recusa em usar arma, para não matar, como ele dizia “minha fidjo”. Pensei em quantos de nós não regressaram. Tantos em que o “amuleto “ do terço, as suas convictas orações, a fé e as orações dos seus familiares, não bastaram. Uma bala traiçoeira, um estilhaço de uma mina ou de uma granada fez o seu sangue correr e regar aquela terra vermelha, levando-lhes a vida, ou marcando-os pelo sofrimento e pela invalidez. Pensei nos que regressamos. Tantos convictos que foram as suas orações e as orações dos seus familiares. A fé forte que os animava e faziam dela razão da sua luta para sobreviver. . . matando, se necessário.


Quantos de nós aceitaram o desafio que a Pátria lhes impôs, em luta com a sua própria consciência. Quem não sentia isso mesmo, nas expressões e orientações dos furriéis e oficiais milicianos e mesmo em alguns dos que conheci pertencentes ao Q.P. quando estavam a dar as suas ordens, na forma como procuravam proteger o seu pessoal e furtar-se ao contacto com o IN.


Conheço outros e conto-me entre eles que aceitando ir para a frente de combate, tomaram por opção não fazer fogo, não dar um tiro, mesmo especialistas da G3 (atiradores). E . . . com este desabafo, crie mais uma frente de conversa, que espero tenha continuidade.


Ressalvo que não é de modo algum minha intenção provocar ou ferir susceptibilidades. Quer em questões de ordem religiosa, quer de ordem patriótica. È apenas o resultado de uma reflexão pessoal que me pareceu merecer ser posta em comum, nesta altura que Fátima - Altar do Mundo, se vai encher de novo para orar pela paz no Mundo e em especial na nossa Pátria.


Zé Teixeira


 


VALA, SALVA VIDAS


 


DO meu Diário


Buba,68 - Julho 22


. . . Chegado a Buba, toda a gente correu para os poucos chuveiros existentes, formando fila. Enquanto uns se molhavam, outros esfregavam o sabão, fazendo um rodopio. Os restantes, completamente nus, esperavam pacientemente uma vaga, quando o IN. apareceu a baptizar a Companhia atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha".  De repente um estrondo lá longe. Logo se ouviu a frase mágica que eu nunca mais vou esquecer- “Aí estão eles” - vinda de vários lados. 


Numa fracção de segundos, o tempo da vida ou da morte, toda aquela gente desapareceu da vista.


Depois, bem depois, foi ouvir uma música muito estranha, de granadas de canhão e de morteiro a rebentar por perto. Armas ligeiras a vomitar fogo, rebentamentos a distância originários das nossas armas pesadas. Enfim, uma festa. Terrível  festa. Os guerrilheiros atacaram com canhões sem recuo de dois sítios diferentes, segundo dizem, causando ainda mais confusão. Felizmente caíram todas fora do arame farpado, não deixando mazelas. Tentaram durante alguns minutos arrasar Buba, o que não conseguiram por fraca pontaria.


Em simultâneo com o ataque desabafa uma tempestade de chuva


Deitado na vala e a aguentar a  chuva e a  metralha, completamente nu, com o corpo cheio de sabão, assim esperei que acabasse a "festa" ,para me ir vestir pois  sabão do corpo saiu por si, graças à chuva.


                Que  espectáculo !  Centenas de corpos (muitos nus) encharcados, mas alegres, saíam calmamente da vala. O chuveiro rapidamente se encheu de novo, como nada tivesse acontecido. A vida continuava porque mais uma vez escapamos.


Perante esta dantesca cena, rendi-me à necessidade de me recolher, encostado à parede da caserna e dar graças a Deus, pela vida que sentia palpitar no coração, a recuperar de um grande susto.


 


VALA BENDITA.


Estranho ruído ao cair da noite escura.


Quebra o silêncio expectante,


Atira-me para a vala,


Abrigo sem cobertura.


Salva-me a vida, naquele instante.


Tenebroso e longo momento.


Angustiante.


O coração bate como nunca senti.


Eu também fugi,


Ao ouvir, “aí estão eles”.


Que algum camarada gritou,


Quando, ao longe o estrondo da “saída”


Para o perigo o alertou.


 Porém,


A granada que ali tão perto rebentou,


Mais uma vida levou.


Ah Vala. !


 Trincheira do medo,


Trincheira da sorte.


Vala bendita,


Que nos escondes da morte.


Momentos.


Minutos que são horas.


Tanto tempo…


Em que a vida não acontece.


O silêncio dos rebentamentos,


Impera.


 O corpo estremece,


O medo entorpece.


Alguns, talvez poucos,


Dirigem a Deus uma prece


No tempo da catequese aprendida


Desordenada,


Remendada.


Há muito tempo esquecida.


Mas bem sentida.


 Na esperança que a bala a si destinada,


Seja pela mão de Deus


Desviada.


E não lhe roube a vida.


 


Zé Teixeira