UM HINO À GUINÉ QUE NÓS CONHECEMOS
- Guiné ! dos pântanos, das bolanhas, dos mosquitos e das febres.
- Guiné! Da mata onde havia momentos em que todos os ruídos paravam. Não se afastavam ou diminuiam, antes tudo se calava abruptamente, como se os seres vivos tivessem recebido uma ordem.
Ouviam-se então coisas impossíveis...."o soprar húmido do vento, o suor dos nossos camuflados, a actividade frenética dos insectos, e mesmo, o batimento do nosso coracão"
- Guiné! Dos escravos, das revoltas nativas, das muralhas do Cacheu, que lá estavam quando cheguei, e lá ficaram ao partir.
- Guiné! Dos Fulas, dos Mandingas, noites de luar, falando dos"avós dos avós", de outros "chãos"onde nunca houvera fome, dos pastores que no céu escuro guardam os milhões de estrelas.
- Guiné! Dos Balantas, símbolo pujante da Africa que luta, que trabalha o seu" chão",mas que também se sabe divertir.(Ah, velha aguardente de cana!)
- Guiné! Dos Beafadas, dosNalus, dos Papéis, dos guerreiros Felupes bebendo vinho de palma pelo crânio dos inimigos vencidos.
- Guiné! Do matriarcado Bijagó.
- Guiné! De Bubaque.....miragem de guerra! - Guiné! De PontaVarela," copacabana" sem casas, sem gente, mas na qual num dia solarengo do principio dos anos sessenta, Brigitte Bardot (PASME-SE!) tomou bom banho de Mar.
- Guiné! Das bajudas de"mama firmada",lavadeiras de tantas "lamas",(e porque não?) de algumas águas bem cristalinas
- Guiné! De Bissau, vilória perdida. Cidade feita de.....avenida única....pouco mais! Da cerveja gelada, das ostras grelhadas com molho picante, dos "mininos"vendendo mancarra em coloridos alguidares de esmalte. Das tascas, dos"restaurantes"(?)que serviam gostoso chabéu que o "Joaosssssinho" Manjaco tão bem preparava! Bissau das muralhas do Forte da Amura.
Lembrança constante de um...estar pelas armas! Bissau da piscina em clube de Oficiais, mas também Bissau do Hospital Militar.
Bissau-----DOS MINUTOS QUE VALIAM OIRO------ROUBADOS Á MORTE QUE ESPERAVA NO MATO!
- Guiné! Da violência, da guerra tribal....dividir para governar!
- Guiné! Do Comando Africano, jovem herói, usado e abusado, para matar "os seus" em guerras não "suas".
- Guiné! De Amilcar Cabral, que, com humildade, soube ouvir os gritos de um Povo.
- Guiné! Onde General destemido, tentava tapar com "mãos nuas"os buracos nos diques, pretensiosamente levantados aos maremotos da História. Saberia ele? Saberíamos nós?.....quando o víamos chegar aos locais mais perigosos da luta, visitar, interessado, os feridos, que olhávamos o........último dos "Comandantes de Africa", num Portugal que jamais seria o mesmo? - Guiné! Onde o "Império"acabou por ruir!
- Guiné! De um círculo. Dos amigos .Dos inimigos. Dos amigos inimigos. E, mais tarde, dos inimigos amigos!
- Guiné! De muitas e tão duras lições!
- Guiné! Do lendário comandante Nino, temido chefe guerrilheiro, que, depois de Presidente, coloca os seus filhos em colégio.......do Porto!
- Guiné! Terra vermelha de argila e SANGUE! Da estrada de Buba a Aldeia Formosa, de Aldeia Formosa a Gandembel. Terra que abraçámos com violência, quando contra ela nos comprimíamos em chão de emboscadas! Terra que "comungámos" no pó e saliva que nos enchia a boca em rebentamentos de minas! Terra regada com tantas lágrimas de saudade, de dramas pessoais, de frustrações e de dôr.......a juntarem-se ás vossas....de povo africano mártir!
- Guiné! De Mampatá, tabanca perdida na selva, onde, tão longe de tudo e de todos, acabámos por......."nos encontrar"
!-Guiné que foi VOSSA/NOSSA, mas que hoje sendo VOSSA é mais NOSSA do que antes. UM MAIORAL –
Joseph Bello STOCKOLM-SET-1981
PENSANDO . . .
A Guiné que eu Vivi ! 1968/70
A Guiné que eu (re)vi 2005.
Arame farpado a rodear as Tabancas (Aldeias). Primeira fiada, segunda fiada. Garrafas vazias penduradas duas a duas para com o seu tilitar servir de aviso aos sentinelas nocturnas. Área capinada, armadilhas de fogo . . ..
Recolhas ao interior da Tabanca, ao pôr do Sol, silêncios …
As festas naturais da comunidade, momentos de alegria, convivências, partilha de amizades, como festas de nascimentos, casamentos, aniversários, convívios, tudo abafado no silêncio aterrador do medo.
Os ataques às Tabancas, as correrias para os abrigos, o dormir com as crianças amarradas às costas para poder salvá-las ao mais pequeno sinal de perigo, os feridos, os mortos, as crianças a chorar . . .
As colunas sem fim, debaixo de sol abrasador, as emboscadas, as balas a assobiar por cima das nossas cabeças, as granadas com o característico som da saída da boca do canhão, que originava o grito: Aí estão eles ! . . . e vida parava . . .
Saídas temerárias à Bolhanha ( áreas de cultivo) para a labuta do ganha pão, nos arrozais, mancarrais, milheirais ou pesca, com medo de encontros desagradáveis. Os nacionalistas do PAIGC apelidados de “Bandido” para os nativos e “Turras” para a tropa branca, podiam surpreender com o “ ágára ! ágára! é nosso ! (Agarra ! Agarra !). Precisavam de alimentar as suas fileiras com combatentes, com transportadores e mão de obra para a produção de riqueza e sobretudo alimentos ( trabalho nas bolanhas controladas). De nada servia dizer que “tem família, tem minino prá cuidar”.
Assim se vivia na Guiné que conheci.
O risco tornava-se maior se o encontro se dava com os “tuga” ( tropa portuguesa) se esta os confundisse com bandido. Possivelmente de nada lhe serviria dizer “amigo di tropa” ou nem tempo teria para o fazer. . .
Recordo os dois jovens irmãos cuja captura testemunhei em Ingoré, suponho que para lá da fronteira, dentro do Senegal, numa das patrulhas que a minha Companhia fez. Recusaram-se ou não sabiam falar Português ou Crioulo, apenas francês que julgo, ninguém do comando sabia o suficiente para os entender. O mais velho foi metido numa masmorra com a sua altura, dois metros de comprido por um de largo ( vergonha nossa). Tinha apenas uma janela, com chapa em lugar de vidros, por onde entrou e depois se fechou.
Assim ficou no escuro alguns dias à espera de ser enviado para Bissau como “turra”. Apenas via a luz do sol, quando lhe levavam comida, duas vezes ao dia. Para as necessidades fisiológicas, um balde, que lhe possibilitava uns momentos de luz e ar ao ir despejá-lo à retrete, dia sim, dia não. Até que, cansado de tanto sofrer tentou a sua sorte.
Quando lhe foram levar comida, atirou-lhes com o conteúdo do balde à cara. Era a última esperança. Liberdade ou morte. Esta vida não. . . . . .
Foi barbaramente assassinado pelo cabo S com um tiro na boca, dentro da masmorra, momentos depois O Cabo S regressou a Lisboa, possivelmente passados uns tempos com a sua Companhia.
Não houve processo, inquérito. Tudo tão natural. Aconteceu . . . Eu estava lá a cinco metros Suponho que no relatório oficial da sua morte, se o houve, devia constar “ morto ao tentar fugir”.
O irmão, mais novo ( 17 anos) não cabia na masmorra. Ficou junto ao refeitório amarrado e guardado por dois soldados, até ir habitar o lugar que seu irmão deixou vago. Tratei-o de um furúnculo que tinha no peito.
Tive oportunidade de conversar algumas vezes com ele em francês. Criei alguma relação de amizade e cumplicidade. Continuei a visitá-lo a pretexto do tratamento. Nas conversas que tivemos confrontei-me com um jovem que tinha bases académicas avançadas para um jovem aldeão do interior da Guiné. As conversas que tivemos sobre vários temas, no meu parco francês confundiram-me.
Comecei por ver nele um possível IN. que merecia ser tratado como pessoa, pois estava doente. Com o desenrolar dos contactos, comecei a gostar de conversar com ele.
Foi como que uma realidade nova para os meus dois meses de Guiné, alguém que se afirma cidadão do Senegal, que rejeita a guerra e não sabe porque foi preso, pois ia para a sua bolanha no Senegal trabalhar com o irmão. Mas alguém que demonstra conhecimentos de geografia e história. Isto tudo me leva hoje a acreditar na sua versão de estudante em Dakar – Senegal, a passar férias na aldeia. Foi ocupar a masmorra que o irmão deixara livre depois de ser assassinado. Acompanhei-o até à prisão. Despedimo-nos com um caloroso aperto de mão, como sempre o fazíamos quando a pretexto de “dar mézinho ao prisioneiro” o ia visitar. Uma lágrima teimosa percorreu a minha face, o coração comprimui-se. Não tive a coragem de lhe dizer o que aconteceu ao irmão.
No dia seguinte a masmorra estava aberta. Julgo que o levaram para Bissau para ser interrogado pela Pide.
Perdoem-me os camaradas leitores este relembrar de situações dolorosas que poderão incomodar. São marcas que ficaram e não se podem esconder, para que a verdadeira história se faça. Durante estes anos passados era esta a imagem que eu retinha da Guiné.
Devorava todas as notícias que foram marcando aquela terra vermelha. Mas o sonho mantinha-se. Precisava de voltar e apreciar as mudanças. Família e amigos apelidavam-me de “doido”.
Rompi barreiras, aceitei o desafio de um amigo e voltei. Atravessei Espanha, Marrocos, Mauritania e Senegal para entrar na Guiné por Pirada (1) e ser recebido como um amigo que volta a sua casa. De facto senti-me em Portugal. É verdade que hoje continua a sonhar acordado e a dormir, com a Guiné, mas uma visão muito mais sadia.
Pensava que uma ida aos locais onde vivi, me curaria da “sodade” . . a Guiné sair-me-ia do pensamento. Se antes, sentia necessidade de ir buscar “Paz” para o meu espírito, agora sinto uma vontade ainda maior de voltar, voltar sempre.
Hoje, continuo a sonhar, mas com a outra Guiné. A de 2005 e a de 2008 com o mesmo povo, franco, aberto, comunicativo e sobretudo alegre e acolhedor.
Os tempos da guerra passaram, e, se deixaram marcas negativas, estas foram abafadas pelo que de bom lhe levamos. Formas de estar, de pensar e agir diferentes.
Apesar de levarmos a guerra e o sofrimento, também levamos uma nobreza de alma. A maior parte dos portugueses que forma chamados à Guiné, eram oriundos do interior de Portugal. Gente humilde e honrada. Gente que soube separar as águas e não ver nos Guineenses um inimigo a abater, mas pessoas que apenas tinham outra cor, outras culturas e hábitos, outra forma de vestir. A simbiose fez-se naturalmente, sem dificuldades e a imagem que ficou, mantem-se. Somos queridos e bem vindos.
– Tu Português de Portugal, eu Português de Guiné - ouvi dizer algures na nova Guiné que visitei em 2005. Ou,
- "Branco ê na volta" ! "Branco ê na volta mesmo" – como me dizia a velhinha mulher do falecido Sambe, Régulo de Contabane(1), quando comovida até às lágrimas me abraçava.
A visão panorâmica das aldeias locais ( Tabancas) mudou completamente e também mudou, felizmente, na minha mente.
Vi pistas de aviação foram transformadas em locais de habitação e de produção de Caju, vi casernas transformadas em escolas, por todas as tabancas por onde passei. Os espaços que mantínhamos capinados à voltas das tabancas por questões de segurança, são zonas de habitação e produção de cajueiros.
As Tabancas cresceram, romperam as barreiras de arame farpado, aproximaram-se umas das outras. Não há medos nem silêncios, há vida.
A estrada de Quebo a Mampatá Forea, outrora deserta e minada, quantas vezes, onde havia duas Tabancas, Afia e Bacardado, esta última abandonada no meu tempo depois de incendiada pelo IN, é hoje uma “passerelle” continua de pessoas em movimento, que se alonga por Uane, Sare Donhã e Samba Sábali.
A estrada de Saltinho, Contabane a Quebo, fechada, após a destruição de Contabane, é outro corredor de interligação de pessoas.
Buba voltou a ter a vida que nos anais da história retratam como cidade comercial ( transformada no tempo da guerra a uma pequena povoação com um forte contingente militar – duas Companhias da tropa macaca, uma de Comandos ou Páras e uma de Fuzileiros). Banhada pelo Rio Grande Buba, braço de mar. Porto de ligação com a zona de Tombali. Centro comercial pela sua posição estratégica, cresceu imenso, gerando uma grande avenida que ultrapassa o fim da pista de aviação, actualmente transformada em zona habitacional e de comércio.
A picada para Fulacunda foi activada, dando acesso `Tabanca de Sare Tuto a cerca de 5 Km de Buba, conhecida por Tabanca Lisboa. Outrora base e centro de treino IN. Daí partiam para nos “incomodar” na estrada em construção, nas colunas para Quebo e nas Tabancas onde estacionávamos ( Buba, Nhala, Samba Sábali, etc. Insólito é que o Chefe de Tabanca actual é um antigo paraquedista das F.A.P. talvez mais português que qualquer um de nós, até no português que fala sem sotaque local. Os seus habitantes são ainda, na sua maioria antigos IN. O nosso amigo que se orgulha de ter servido Portugal tirou o Curso em Tancos e seguiu para a sua terra onde durante anos serviu Portugal nos Páras. No fim da guerra viveu clandestinamente durante dois anos e depois voltou . . . para a mulher que tinha do outro lado da barreira e vivia nesta linda Tabanca de Sare Tuto (ou Lisboa), onde ainda hoje, quase só se fala Crioulo ou francês. As suas bases culturais depressa o guindaram para Chefe de Tabanca. Tem em funcionamento uma escola de Português e está a criar outra no outro extremo da Tabanca. Conhecedor da mata como ninguém, é um excelente pisteiro, procurado pelos caçadores brancos que vão à Guiné e se instalam no Saltinho.
Aqui neste cantinho escondido da Guiné, tive o meu reencontro oficial com o IN. Quatro homens e mulheres, manga delas observavam-nos à distância de 2/3 metros. Perguntei quem eram e tive como resposta eram “Turras”.
Dirigi-me a eles “ A bó bandido qui taka Buba, tempo di guera ?.
Começaram se a rir e um deles retorqui:
"A bó turra branco qui firma na Buba ? Djobe. Manga di tempo qui guera na kaba. Parte mantanhas."
Demos um abraço e eu senti-me um homem feliz.
(1) Contabane é uma tabanca que fica entre Quebo e Saltinho (Sinchã Shambel). O Régulo Shambel, teve a visita do IN na noite de S.João de 1968. A Tabanca foi incendiada e destruída, o Pelotão da C.Caç.2382 teve de retirar com a roupa que trazia no corpo e a população refugiou-se em Quebo. Actualmente a sua mulher vive em Sinchã Sambel do outro lado da ponte do Saltinho, cujo chefe é seu filho. Este era milícia em Mampatá Forea e casou com a Àdada filha do Alferes de milícia Aliu Baldé, régulo de Mampatá no meu tempo. Tive o prazer de conviver de novo com esta mulher que era uma das mais belas bajudas que conheci, e continua a sê-lo a par da sua amiga e futura cunhada Famara Baldé (minha “lavandera”)
Zé Teixeira