Nota do editor:É expressamente probido copiar ou publicar em todo ou em parte, qualquer dos textos editados neste blogue, sem autorização do editor.
O MEU BATISMO DE FOGO.
Tinha chegado no anterior a Buba, vindo Ingoré no norte
Partimos logo cedinho, seguindo até ao fim da Pista de aviação. Embrenhamo-nos na mata serrada, de árvores gigantescas, ora a campinzal descoberto. Espaços entre os homens bem medidos. Silêncio absoluto, quebrado longe a longe pelo piar de uma ave que nos sobrevoa intrigada, ou por um galho partido, descuido de algum camarada, que logo se penitencia, perante o olhar áspero do comandante. Um caminhar lento e cauteloso de ouvido atento e olhar prescutante centrado na floresta virgem ou no movimento que a brisa matinal impõe ao seco capim.
Mal o Sol aparece a dar-nos os bons dias, logo a temperatura se eleva e a camisa começa a colar-se ao corpo. A marcha continua sem parar. Ouvem-se ruídos estranhos, parece ser uma matilha de cães. Logo à frente um grande bando de macacos saltava de árvore em árvore, numa dança sem fim. Um espectáculo de vida em movimento, indiferentes ao nosso penoso e lento caminhar, ora por entre a vegetação, ora enterrados na lama ou embrenhados na densa floresta
Quase sem me aperceber, encontro-me de novo na Pista, às portas de Buba, lá ao fundo o grande Rio de Buba, convida-me a um mergulho. Respiro fundo, enquanto a mente me lembrava que para já tinha escapado.
Depois do tardio e saboroso almoço, não pela qualidade, mas pela fome que trazia, ousei ir dar o merecido mergulho nas águas quentes do rio, mesmo depois de me terem lembrado que uns tempos atrás choveram balas vindas da margem oposta, atiradas por alguém, que gosta de pregar sustos. Seguiu-se um tempo de descanso, bem merecido
Depois . . .
Foi tempo de paragem, de encontro comigo mesmo em busca do Zé que deixou parte de si em Portugal, mais propriamente no Porto.
Um pequeno grupo de colegas, convida-me para rezar por ser Domingo.
“Foi preciso lembrar-me hoje é Domingo...
Tinha saído às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado.
... Só ao fim da tarde, quando a noite surge e porque um colega me recorda, verifico que é Domingo !...
É verdade Senhor, é o teu dia, o dia que Tu instituíste para te louvarmos ... e a minha Missa foi mais uma coluna. Rezei. Aceita Senhor o meu cansaço como sacrifício neste dia.
Julho 1968 / 22
Começou a guerra a sério para mim. Ainda esgotado pelo esforço de ontem, saí, de novo, às seis da manhã para esperar a coluna vinda de Aldeia Formosa ( Quebo). Às oito embosquei junto à "ponte interrompida", no rio Bolola, e por volta das doze recebi ordem para avançar para lá do cruzamento de Sinchã Cherno, local em que a picada se divide, seguindo uma para Empada e outra para Aldeia Formosa, por Bolola e Missirá. A coluna aproximava-se. Ouvi dois rebentamentos e fiquei preocupado... será que a coluna foi atacada ?...
Cerca das dezassete deu-se o encontro de forças e soube então que detectaram cinco minas anti-carro, duas das quais rebentaram.
Todos alegres, voltamos a Buba com o simples café, a camisa molhada de chuva e suor à mistura.
Ainda mal tínhamos chegado quando o IN. apareceu a baptizar a Companhia atacando de Canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". Tentou durante cerca de 15 minutos, os minutos mais longos da minha vida, arrasar Buba, com fogo cruzado vindo de ambas as margens do Rio de Buba que ali se reparte em dois, formando uma espécie de Y. Não conseguiu por fraca pontaria ou porque não quis. Disse-me em Fevereiro passado, durante o simpósio de Guiledge um dos comandantes de guerrilha com pude conversar um pouco e que pelo menos nos cruzamos por três vezes no tempo que por lá andei. “Nós o que queríamos é que vocês se fossem embora, muitas vezes íamos só na chateia “
Dezenas de homens faziam fila, completamente nus, para tomar o refrescante banho. Na operação estiveram envolvidos; Três grupos de combate da C.Calç. 2381( a minha) dois Grupos de combate da C.Caç 2382 estacionada em Buba, dois grupos de Combate da “Lenços Azuis, um grupo de combate de Caçadores Africanos comandados pelo terrível Alferes Aliu Candé, de Aldeia Formosa mais um pelotão de milícia de Buba.
Para ganhar tempo, enquanto uns se molhavam, outros se ensaboavam e outros esperavam. Eu estava a ensaboar-me, quando a “festa” se inicia. Num ápice toda aquela maralha se despeja na vala que existia, mesmo ao lado, uns por cima dos outros .
Ai ! . . . Ui! . . . Chega para lá filho da P . . . Este gajo esta todo borrado ! . . . (alguns na confusão da fuga foram de empurrão e como estavam molhados ficaram cheios de terra). Ai Nossa Senhora de Fátima, vamos morrer aqui todos.. .
Três frentes de fogo; as duas deles e a nossa, faziam um estrondo de arrepiar. E cerca de metade dos homens estavam a ser baptizados. Para completar a cena, desaba uma tromba água, cuja descrição me dispenso de escrever, pelo conhecimento que têm os queridos leitores, deste fenómeno na Guiné.
Eu era dos que estava completamente nu a ensaboar-me, quando ouço um estrondo seguido de tiros de armas ligeiras, logo outro e outro.
Minhas pernas começam a tremer de forma inexplicável, o coração a bater descompassadamente, vejo toda a gente a fugir e a desaparecer na vala, que eu tinha visto antes, mas não me tinha apercebido da sua utilidade, pois no norte em Ingoré, não havia nada disso.
Os estrondos das saídas das bocas dos canhões, dos rebentamentos das granadas por todo o lado e abuso das rajadas de G3, mais os estouros das “costureirinhas” deixaram-me atarantado, até que alguém na fuga me empurra e dou por mim enfiado na vala, rodeado de homens nus, que com a preocupação de se protegerem baixavam a cabeça, encostando-a ao rabo do camarada da frente, que por sua vez estava em posição idêntica. Nenhum de nós estava protegido com uma cuecas de folheta, por exemplo, mas que se conste ninguém foi desvirgindado nessa dia.
Encharcados até aos ossos pela carga de chuva que se aliou ao inimigo, ali aguentamos o embate, com o coração aos saltos, até que, o fogo foi diminuindo, ficando as nossas armas a cantarem sozinhas por algum tempo, pois o IN afastou-se tal como surgiu rápido e pela calada, se afastou depois de deixar a carga mortífera que trazia, na mata, nas águas do rio e suas margens. Dentro do quartel caíram uma ou duas canhoadas que não fizeram estragos e creio que a população ficou incólume.
Que espectáculo ! Centenas de corpos (muitos nus) encharcados, mas alegres, saíam das valas...
A chuva fez de chuveiro e limpou os que estavam ensaboados, mas . . . fomos todos de novo limpar com água o medo que nos atravessou a alma
Mais uma vez escaparam... escapamos . . . escapei .
Encontrei vindos de Aldeia Formosa, três colegas de recruta. À noite, vieram procurar-me. Encharcados pela chuva, cansados da coluna, com receio de novo ataque, queriam dormir e não tinham onde... não havia espaço coberto, nem camas.
A odisseia continuou no dia seguinte.
Saí de Buba dia vinte e quatro de Agosto de 1968 às seis da manhã e cheguei a Aldeia Formosa dia vinte e cinco às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades. Cerca de trinta quilómetros de marcha que se fariam em cerca de 3/4 horas, numa situação normal, pela picada levou-nos cerca de trinta horas de marcha
A estrada (picada ) está num estado lastimoso; buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros, foram percorridos em oito horas e meia.
A coluna seguia lentamente, cautelosamente. Os “piras” concentrados.
As mãos de alguns, integrados no grupo de “picadores”, agarravam febrilmente as varas de ferro com que picavam a terra à procura de algo mais duro que indiciasse uma caixa de madeira ou chapa metálica, onde poderia estar a perigosa mina assassina, que muitos de nós nunca tínhamos visto nem imaginávamos como seriam.
Ouvidos atentos aos sinais toc, toc que se repercutiam na terra e ao mais pequeno som diferente, logo ordem de paragem.
Ninguém mais se mexia.
Uma insistência, o rebuscar da terra envolvente. Por vezes uma raiz ou uma pedra provocava um respirar aliviado e a marcha continuava.
O olhar atento que se desdobra em todas as direcções; o caminho que se vai trilhar em busca de sinais de terra remexida de fresco; a mata cerrada que nos cerca, onde o inimigo pode estar, aguardando o melhor momento para atacar e matar. Roubar a vida a quem ama a vida, obrigando a uma partida prematura, deixando o futuro cheio de saudades de quem parte e quem assim parte leva imensas saudades do futuro.
O primeiro ataque foi de abelhas.
Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada.
Eu fiquei quedo como um penedo s, a conselho de um soldado da milícia que estava a meu lado, me arrastou para o meio de uns arbustos ali ao lado na mata. Ele foi a “mão de Deus” que me protegeu das picadas das abelhas.
Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada um tanto hilariante de toda a gente que protegia a coluna de viaturas naquele sector.
Se o IN. tivesse atacado nesse momento seria um desastre total, tal foi a desorganização gerada. Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo...
Inimigo cobarde !... frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.
Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas minhas mãos, que os homens não se amem ? Que culpa tenho eu ?
A sua vontade de fugir à morte impressionou-me e ainda hoje parece que estou a ouvir os seus últimos e já ténues gritos de vida.
Estava a comunicar via rádio com Buba a informar que se tinha passado uma zona considerada perigosa, o entroncamento da estada de Aldeia Formosa com a estrada que seguia para Empada em Sinchã Cherno, sem qualquer dano, quando a viatura em que seguia accionou uma mina anti-carro. Era a quinta viatura, a mais frágil das que tinham pisado a estrada.
Aparentemente estava livre de perigo das minas, dado que as anteriores viaturas eram extremamente pesadas, quer pela carga que traziam, quer pelos sacos de areia que substituam os bancos. Logo atrás vinha o primeiro Obuz de 14 que se destinava reforçar a defesa de Aldeia Formosa.
Ouso pensar que o condutor talvez se tivesse desviado um pouco do rodado feito pelas viaturas antecedentes, sem pôr de parte a hipótese de a mina estar programada, para o carro do rádio ou eventualmente para o Obuz.
Dos três camaradas atingidos foi o que aparentemente menos sofreu. Não apresentava ferimentos externos. Do estado de choque em que caiu, rapidamente foi recuperado.
Pouco tempo depois começou a sentir falta de forças e a cor da pele que reflecte a vida começou a fugir da sua face. Sede. Muita sede e o corpo a arrefecer. A angústia e o desespero começa a tomar conta dele e de nós, os enfermeiros, que nos apercebemos da situação, sem lhe poder valer. Com a queda tinha rebentado vasos sanguíneos internos, que implicava internamento urgente para ser operado a fim de se localizar a origem e se poder estancar a hemorragia. As forças fugiam a cada momento. Passado algum tempo gritava desesperado: já não vejo! Já não vejo ! vou morrer. Eu não quero morrer, salvem-me !
Impunha-se uma evacuação urgente, mas como ?
Os dois aviões que nos tinham acompanhado até aquele local e batido a zona, tinham-se ido embora. As comunicações foram destruídas pela mina.
Que raiva, meus Deus !
De nada valeu a água que esgotamos, o soro que lhe demos, o carinho e. . . talvez as orações de alguns.
A morte veio matar o futuro daquele jovem. A vida fugiu-lhe rodeada de amigos que nada puderam fazer.
O destino marcou no tempo, aquela hora, aquela viatura, aquela vida cheia de vida, que deixou de ser vida. Partiu para sempre cheia de saudade de um tempo a que tinha direito a viver e nem sequer teve tempo para conhecer, porque o seu futuro deixou de existir.
A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h.) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra... dura guerra !
Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o R.T. morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino, nada pudemos fazer.
Esperávamos que o IN. atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçamos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.
Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate, mal chegou para o primeiro dia. À Frente havia INs. "manga dele",havia buracos; pontes interrompidas; havia minas, só não havia comida.
Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bi-grupos esperavam-nos. Felizmente a Milícia comandada pelo Aliu Sada Candé que protegia os flancos descobriu-os e sem compaixão, pôs as suas máquinas de guerra a funcionar. O meio e a retaguarda da coluna embrenhados no mato, aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da retaguarda, onde eu me integrava a ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.
Foi aqui, neste primeiro encontro a sério com o inimigo, que eu me zanguei com a G3 ou a D. G3rtrudes, como eu lhe chamava abandonando-a para sempre.
Na quinzena de campo (IAO) que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão. Era uma G3 ou a G3ertrudes
Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.
1º Trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que, a baba ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.
2º Pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos
3º Sempre travadinha para não fazer asneiras
4º Nunca abandonasse, pois, se perdida, dava origem a no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com uma G3ertrudes.
Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável. Pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro. Deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN, ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.
Antes da partida, prometera a mim mesmo, não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos. Cantei de alegria, quando soube que “as sortes” me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e quem sabe, salvar vidas. Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.
Na azáfama de tratar os feridos no dia anterior, esqueci-me da G3ertrudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Era preciso procurá-la. Aonde ?
Tinha-lhe perdido o lugar.
Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.
Foi uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o inimigo à espreita.
Chegou a manhã e com a ela a primeira emboscada, que para quem vinha na retaguarda da coluna foi apenas um estar atento e esperar o silenciar das armas lá na frente. Os guerrilheiros recuaram, voltou o duro silêncio de morte e a vida continuou por momentos. Reinicio da marcha lenta e dolorosa, com sono, fome e sede, um camarada cadáver e três feridos, mas uma vontade gigantesca de sair daquele buraco
Logo depois, apareceram na retaguarda em força.
Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos.
A G3ertrudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado directamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.
A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.
Ah! G3ertrudes de um raio ! Anda cá.
Apontar, disparar e . . . um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho.
À minha frente jazia a G3ertrudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão
Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.
Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa chamas foi o impecilho que me salvou a vida. Uf ! desta já escapei.
A G3 que no dia anterior tinha encontrado “abandonada” pertencia ao Salvaterra Bernardes, natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental que assassinos ( não encontro nome mais apropriado), apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na C.Caç 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.
Pobre Salvaterra que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o "quico", ás botas, do cinturão à G-3, tudo nele estava mal vestido,"mal assentado".Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.
Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços, e muito menos, com o movimento das pernas. Na "ordem unida" tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis.
Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía, desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada
A Arma na mão deste homem, não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza para quê ?
O cano estava cheio de areia. A Bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa chamas.
Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e . . . talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.
Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.
Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída, logo que cheguei a Aldeia formosa e . . . para não, mais, ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma “porrada” se me apanhasse sem a minha G3ertrudes.
Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão.
A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento ( três obuses de 14mm, entre outro material).
A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de Hélio. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.
Em 2005 e 2008 tive a feliz oportunidade de trilhar de novo, alguns destes caminhos agora voluntariamente e sem o perigo de encontrar o IN, bem pelo contrário, nalgumas situações em 2008 foram meus companheiros de viagem.
Recordo o Braiama Cassamá que me atacou em Aldeia Formosa, tentou entrar em Mampatá Forreá em Novembro de 1968 pelas duas horas da tarde, chegando a estar dentro do arame farpado, segundo me disse (é verdade, que chegaram a entrar, mas logo tiveram de fugir, e, ele foi um dos que ousou penetrar).
Como sapador participou na montagem em Changue Laia a caminho de Ponte Balana um campo de minas, cerca de setenta –, a C.Caç 2317 caíu lá e teve cinco mortos, a minha Companhia levantou vinte e sete, uns dias depois, sendo as restantes detectadas pelos Páras, entretanto chamados à zona.
Em Fevereiro, quando soube que eu tinha estado por aquelas bandas, procurou-me, conversamos, revivemos as nossas aventuras em campos opostos e outros, apresentou-me outros camaradas, em tempos idos, INs e . . baptizaram-me com “ermon” (irmão).
Zé Teixeira
O GENERAL QUE NÃO GOSTAVA DE BIGODES.
Tenho tentado" redescobrir" alguma da papelada que, mais de trinta anos atrás, escrevi, sobre alguns "detalhes" da passagem pela Guiné. Aqui mando mais um testemunho do que por lá se.......chafurdou!
"O império caía de podre.
Não eram os nossos camuflados tão sujos, enlameados, e suados, que......cheiravam mal!"
Certo Oficial-General do E. M. E. encontrava-se de visita à Guiné.
Passeou-se de helicóptero por vários Comandos de Batalhões, e, entre eles, o de Buba.
Depois de almoço "de ronco", o Sr. General....botou discurso. O tema eram......os esforços dos que, como ele, nas repartições de Lisboa, tudo faziam, e principalmente, sacrificavam, para que a tropa do mato dispusesse das melhores condições para o desempenho das suas missões de guerra.(TEXTUAL!)
Ouvem-se ruídos na parada do aquartelamento.
Chegava a coluna de reabastecimentos de Aldeia - Formosa, escoltada por uma Companhia de atiradores. Não eram muitos os quilómetros que separavam Buba de Aldeia - Formosa. Eram muitas as minas, fornilhos, e emboscadas. Demorava-se, dois dias. Dois infernais dias! Mortos, feridos, viaturas destruídas, eram o preço dos géneros transportados.
Comandava, normalmente, aquelas colunas, um Capitão de Artilharia, já na sua terceira Comissão de guerra, e segunda no mato da Guiné. Era um Oficial destemido, e cumpridor, que, pelo seu exemplo, tinha para além da admiração, e respeito, a amizade dos que serviam sob as suas ordens. Como habitualmente, as forças da escolta formaram na parada. Cobertos de lama, rotos, esgotados, mas em impecável formatura militar. Era necessário saber-se "comandar", para naquelas circunstancias, se obter aquele resultado.
Ao ver o General, que entretanto chegara à porta da messe, situada em edifício alto, com domínio sobre a parada, o Capitão fez as tropas formadas prestarem as honras devidas ao Oficial Superior. Impecável manejo de armas. Após a Companhia dispersar, o Capitão acompanhado pelos Alferes, dirigiu-se à Messe para merecida cerveja fresca.
Quando já aí se encontrava, conversando com os oficiais do Batalhão que pretendiam saber notícias sobre as peripécias da coluna, o Sr. General levantou-se da mesa, onde, a sós, conversava com o Comandante do Batalhão, e dirigiu-se ao grupo dos recém-chegados. Olhando o Capitão com expressão fria e superior, em contraste com o ambiente de calor amigo que se fazia sentir à volta do grupo, disse em voz razoavelmente elevada:---Ó homem....vocês estão bem porcos. E francamente, quanto ao seu bigode.....olhe que não gosto nada dele!
Fez-se profundo silêncio.
Ainda hoje me pergunto, que complexos, que frustrações, que poder de impotente, existiam em conflituosos choques dentro daquele homem, em tão inoportuna manifestação de "hierárquica estupidez", considerando as circunstâncias.
O Capitão, poisando o copo de cerveja no balcão, e colocando-se, frontalmente, em rígida posição de sentido, disse:
É óbvio que V.Ex. não gosta de bigodes ....... pois, pelos vistos, não os usa! Quanto ao estarmos "emporcalhados".............saiba V.Ex. que, por estes matos da Guiné......aparece, e passa..........muito lama!
Estávamos então, AINDA, em fins de 1969! (Este REAL (1) Capitão de Artilharia já faleceu, com o posto de Coronel São as recordações como esta que nos ajudam a dar as verdadeiras perspectivas, do que por lá andámos a......chafurdar! Um grande abraço.
J.Belo. (1)
Nota de J.Teixeira: tratava-se do Capitão Rei, da Cart 1792
“FERMERO KÁ TEM PATACÃO PRÁ PAGA. TOMA MINHA MUDJER !
“ De “ O meu diário” 1969 – Janeiro, 05
Estou de volta a Mampatá, após uma coluna ( de ida e volta) a Buba.
Se todas as colunas decorressem como esta , não me importava de fazer colunas.
Cerca de 400 homens em movimento.
Admiro esta população. Quando souberam que eu ia a Buba, vieram despedir-se de mim.
As bajudas abraçavam-me…sei lá. Dá gosto viver com esta gente.
1969- Janeiro, 13
Chamarra é o meu novo hatitat desde ontem.
A despedida de Mampatá foi triste e chocante.
Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o africano é homem, que, sendo compreendido e ajudado se dá numa amizade sincera.
Muitos pediam que eu ficasse,(1) outros para ir até lá, as bajudas beijavam-me, etc, etc, . . . Ao reler o “diário” que teimosamente fui escrevendo em cima dos acontecimentos, com o objectivo concreto de extravasar para o papel o que me ia na alma naquele exacto momento, esbarrei com estes dois pequenos textos, os quais posso afirmar encerram ou definem, quanto foi para mim agradável viver meio ano no convívio com aquela simpática gente, num “oásis” plantado em pleno teatro onde se praticava a mais dura guerra de guerrilha.
Passados que são trinta e nove anos, o meu pensamento, mergulhou de novo em Mampatá Forreá. Pequena tabanca no sul da Guiné Bissau, situada a cerca de cinco quilómetros de Aldeia Formosa ( Quebo).
Cruzamento de quatro estradas (picadas), qual delas a mais apetecível para se passear acompanhado, no mínimo, com a G3 bem abastecida e em grupo destemido e disposto a vender cara a vida.
Não havia muito por onde escolher: uma direccionava-se para Gandembel, passando por Chamarra e Ponte Balana, continuando depois pelo “corredor da morte” até Guiledje; outra corria para Buba, passando por Uane ( destruída e queimada pelo IN, onde tinham sido apanhados e feitos prisioneiros, cinco camaradas, em Maio último), Nhala e a temível bolanha dos passarinhos na Lagoa de Cufada; uma terceira, que, lançando-se da direcção de Colibuia e Cumbijã, tabancas abandonadas recentemente, se partia em duas, seguindo uma para Guiledje e outra para Buba, passando por Sinchã Cherno, onde quinze dias antes, eu, vivera o drama de não poder valer a um camarada que partiu para o eterno aquartelamento, para desespero de todos nós.
A última, embora tivesse o seu fim em Bissau, passando por Aldeia Formosa, Saltinho, Xitole e Bambadinca, ficava-se por Aldeia Formosa, desde o fatídico dia 24 de Junho, em que o IN atacou Contabane, incendiou a tabanca, pondo a tropa e a população em fuga com a roupa que tinham no corpo. Muitas cenas vividas, me vieram à memória.
Vou começar pela primeira. Recordo a minha tímida chegada, integrado no 3º Grupo de Combate, para aqui destacado temporariamente em Agosto de 1968. Tinha como responsabilidade garantir a assistência, como enfermeiro, aos militares, meus camaradas, ao pelotão de milícia e à população.
A forma como a população nos acolheu foi excelente.
Tratava-se de uma pequena tabanca, onde os habitantes não chegariam aos quinhentos, sem quartel, ficando os militares em abrigos construídos artesanalmente com troncos de madeira, espalhados em redor da aldeia, para protecção da mesma.
Recordo o milícia que se dirigiu a mim, logo à minha chegada, dizendo que o pai “estava manga de doença”, “bariga e na dê” e “bariga ramassa” – suponho que me queria dizer que o pai tinha muitas dores de barriga e os intestinos presos. Como ainda estava presente o enfermeiro que iria render (isto de aprendiz de enfermeiro passar a médico às três pancadas, não foi fácil para mim), pedi-lhe apoio para este problema e tive como resposta: - este gajo é um chato. Tens ali uns comprimidos. Dá-lhe apenas um por dia. Não lhe dês o frasco, pois se o fizeres no dia seguinte está aqui de novo com a mesma ladainha e tu nãos tens remédio para o calares.
– Cumpri as instruções do colega e o homem lá foi tirar as dores ao pai. Coitado.
Manhã cedo, lá estava o Suleimane: “Fermero, parte quinino pra minha pai. Bariga na dê! Armei-me em “xico esperto” e acompanhei-o à morança para ver o pai, qual médico sabichão, sem conhecimentos, sem instrumentos, apenas com um frasco de pírulas castanhas que eram recomendadas para tirar dores em geral e nos pós-operatórios, aconselhando uma toma mínima de três por dia.
Medicamento milagroso, cujo nome, por traição da memória, não consigo relembrar, mas que muito me ajudou a debelar dores a brancos e a pretos, que nos dezassete meses que se seguiram, me procuraram, à procura de remédio para as suas maleitas, na ausência quase permanente de um médico.
Após uns minutos de difícil conversa, dado que o velho doente se exprimia apenas no seu dialecto, o filho palrava algumas palavras em português à mistura com crioulo que para mim ainda era chinês e eu fazia perguntas em português de Portugal, consegui deduzir que o homem não fazia o saneamento da tripa cagueira há mais de oito dias.
A barriga parecia uma dura pedra. Ao fazer a apalpação como tinha visto o médico a fazer, provoquei a saída forçada de uma estrondosa e mal cheirosa bomba de gazes, que por uns instantes perfumaram o ambiente, valendo-nos a porta que não havia e o telhado que era de capim, para desanuviar o ambiente.
Este acontecimento, acompanhado pela tomada de um dos comprimidos milagrosos, gerou temporariamente um aliviar das dores do velho, mas isso para mim não era solução.
Dirigi-me ao alferes comandante do destacamento, que depois de me ouvir atentamente, concluiu comigo que era urgente o doente ser visto por um médico, coisa rara por aquelas bandas, pelo que havia de ser pedida uma evacuação urgente, dado que a avioneta do correio só viria na Sexta Feira e estávamos na Segunda.
Uma mensagem rádio para Aldeia Formosa, dali para Buba, suponho, e, de lá, para Bissau, com retorno a tentar saber da razão da urgência em pedir uma evacuação para a população.
Resposta do alferes comandante: sou alferes atirador e não médico, o meu enfermeiro diz que não se responsabiliza, eu também não. . . A meio da tarde recebemos novo rádio a comunicar a vinda da avioneta e lá vamos nós com o velho, a caminho de Aldeia Formosa, sem as devidas e normais cautelas, próprias de quem está em zona de guerra, sem azar, por aquele dia.
Embarcou pai e filho com destino ao hospital de Bissau, ficando eu aliviado em consciência e livre de um chato que deixou de me pedir “mesinho para pai di mim”.
Uns dias depois o filho regressou. Pude saber que o pai foi operado de urgência e estava recuperar bem.
Dois meses depois regressa o velhote, com outra cara, sem dores e até ao meu afastamento de Mampatá, nunca mais deu problemas.
Foi uma “entrada de leão” a minha, em Mampatá, por força das circunstâncias, mas que de algum modo marcou toda a relação entre a população nativa e a tropa, nos seis meses que por ali estacionamos. Ficou para mim, o melhor quinhão, naturalmente.
O Suleimane, quando o pai regressou curado, dirigiu-se a mim para me agradecer, do seguinte modo: Fermero ká tem patacão prá paga. Toma minha mudjer. É tua mudjer. . . .e ficamos os dois abraçados.
Zé Teixeira
(1) Soube já em Chamarra que o alferes da milícia e chefe de tabanca Aliu Baldé e o sargento da milícia Amadu, foram a Aldeia Formosa pedir ao Major Azeredo, para eu ficar em Mampatá, enquanto houvesse tropas da minha companhia no Sector – tinha ficado o 2º Grupo de combate em Chamarra. Como tal não era possível dado que em Mampatá tinha sido colocado um 2º pelotão de milícia com um africano como enfermeiro, fui então colocado na Chamarra com prejuízo para o meu colega, que foi com a Companhia para Buba, montar segurança na construção da estrada, tendo eu sido mandatado para ir uma ou duas vezes por semana a Mampatá , atender e assistir a população.
AG3ERTRUDES ENCRAVADA QUE SALVOU DUAS VIDAS
Na quinzena de campo (IAO) que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra.
Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão.
Era uma G3 ou a G3ertrudes
Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.
1º Trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que, a baba ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.
2º Pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos
3º Sempre travadinha para não fazer asneiras
4º Nunca abandonasse, pois, se perdida, dava origem a no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com uma G3ertrudes.
Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável. Pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro.
Deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN, ou no chão de cimento na caserna em Ingoré. Antes da partida, prometera a mim mesmo, não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos.
Cantei de alegria, quando soube que “as sortes” me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e quem sabe, salvar vidas.
Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação. Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3ertrudes para sempre.
Estávamos em plena época das chuvas.
Partimos de Buba às seis da matina com destino A Aldeia Formosa, terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde. A C. CAÇ 1792, veio buscar-nos.
Os Lenços Azuis, foram, assim, testemunhas no meu baptismo de fogo em aquartelamento. Mal chegamos, (tínhamos ido ao seu encontro) fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.
Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuzes de 14 mm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.
Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de. . . abelhas, quando tínhamos andado, apenas, uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama.
As transmissões terminaram a sua missão. Ficamos isolados do mundo.
Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o rádio telegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi se aproximando lentamente.
A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria.
Tínhamos ficado sem comunicações. Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava.
Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar.
Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar. Já não vejo ! gritava. Ajudem a levantar, balbuciava, mesmo no fim, com a esperança de ainda conseguir recuperar forças e poder gritar bem alto, safei-me ! Mas não. Não era possível. O seu destino fora traçado, quando alguém pegou num lápis e riscou o nome dele, assinalando-o para ser mobilizado para a guerra. A guerra que ele não queria . . .
O sol começou a esconder-se como que envergonhado e o camarada irmão, disse adeus a vida, serenamente, sem pressas, em silêncio . . .
Na azáfama de tratar os feridos, esqueci-me da G3ertrudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Agora, era preciso procurá-la. Aonde ? Tinha-lhe perdido o lugar. Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.
Uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o IN à espreita. Até que o Sol raiou de novo e com ele a ordem de marcha.
A partida para o desconhecido. Chão que eu nunca pisara. Lama e mais lama. Mata cerrada. Grandes palmeiras, que furaram a selva verdejante à procura do sol, apontavam o céu. . . Não demorou muito a aparecer o IN.
A coluna era demasiado longa e pesada. Lentamente lá se ia movendo à procura do destino.
Deu para emboscarem a frente. Recuaram face a forma como ripostamos e voltaram a atacar a retaguarda.
O meu baptismo de fogo na mata. Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos.
A G3ertrudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado directamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.
A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.
Ah! G3ertrudes de um raio ! Anda cá.
Apontar, disparar e . . . um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho. À minha frente jazia a G3ertrudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.
Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa chamas foi o impecilho que me salvou a vida.
Uf ! desta já escapei. A G3 que no dia anterior tinha encontrado “abandonada” pertencia ao Salvaterra Bernardes, natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental que assassinos ( não encontro nome mais apropriado), apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na C.Caç 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné. (1) A Arma na mão deste homem, não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza para quê ? O cano estava cheio de areia. A Bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa chamas. Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e . . . talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.
Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.
Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho. A meio da tarde a aviação localizou-nos, o hélio veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou.
Chegamos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto. Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída e . . . para não, mais, ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma “porrada” se me apanhasse sem a minha G3ertrudes.
Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão.
Zé Teixeira
(1) Pobre Salvaterra que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o "quico", ás botas, do cinturão à G-3, tudo nele estava mal vestido,"mal assentado".Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca. Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços, e muito menos, com o movimento das pernas. Na "ordem unida" tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía, desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada! (Joseph Bello)
Aventuras de MAIORAIS
Gandembel tinha-se tornado nome tristemente célebre na Guiné de 1968/69.
Verdadeiro quartel mártir, era atacado dia sim, dia sim, por tudo o que era armamento pesado na posse do inimigo. Este, pretendia a todo o custo, obrigar as nossas tropas a abandonar uma área que já então controlava.
Os abastecimentos ao isolado aquartelamento, eram efectuados por "colunas de sacrifício", em condições de difícil descrição, quanto a perigos e esforços.
Em tentativa de aliviar o crescente estrangulamento que o inimigo ia exercendo sobre a guarnição mártir, foi decidido o desencadear de algumas espectaculares operações de tropas para-quedistas. Os guerrilheiros foram apanhados em total surpresa.
Nas acções iniciais obtiveram-se avultados êxitos, tanto em material capturado, como em acampamentos destruídos, assim como elevado número de baixas causadas.
Houve então um período de curtas semanas em que a área acalmou, enquanto o inimigo procurava reagrupar-se. A ocasião, e o facto das tropas paraquedistas continuarem estacionadas na zona, foi aproveitado para inesperada visita à mesma, por parte do (salvo erro) Comandante da Região Aérea da Guiné e Cabo Verde.(ou seria o Chefe Do Estado Maior da F.A? confesso que à distancia de quase quarenta anos não recordo o detalhe!).Era, no entanto uma visita a ser explorada em termos políticos, como "evidente" demonstração do "controlo efectivo da zona"(?)por parte das nossas forcas.
O sr.Brigadeiro realmente apareceu na data marcada, sendo desembarcado de um helicóptero em Aldeia Formosa.
Daí, seguiu em coluna auto para Gandembel, que se situava a umas dezenas de quilómetros a Sul. Duas Companhias de Paras, mais duas Companhias de atiradores, mais uma Companhia de milícias nativas, foram utilizadas na escolta e cobertura desta "simples" deslocação do Sr.General.
Dos destacamentos isolados, e que se situavam entre Aldeia Formosa e Gandembel, (1) também foram destacadas forças para montarem emboscadas de protecção ao itinerário.
Como seria de esperar, o apoio aéreo não faltou ao chefe da F.A.,tanto em helicópteros canhão como em parelhas de jactos Fiat, e velhos T.6.
Nunca víramos tantos, nem a zona fora tão assiduamente sobrevoada como nesse dia.
A coluna não foi atacada no seu deslocamento, apesar de terem sido levantadas dezenas de armadilhas e minas.
Num dos isolados destacamentos, um Alferes e um Furriel, sentados sob frondoso mangueiro, olhavam num misto de ironia e incredibilidade todo o "circo" aéreo que se verificava já há longas horas.
-Isto parece a Feira Popular! Disse um deles. –Não vamos perder esta oportunidade de cumprimentar o nosso General!
Dirigiram-se para o Jeep, e arrancaram calmamente pela picada em direcção a Gandembel.
O que conduzia, seguia desarmado.
O outro, empunhava impressionante machado Fula utilizado em cerimónias da etnia.
Ao chegarem ao último destacamento da zona "controlada", (2)ninguém queria acreditar na história de que iam sozinhos, estrada fora, para cumprimentarem o............Sr. General!
Daí para a frente ninguém passava sem se fazer acompanhar, pelo menos, de duas Companhias reforçadas, e de apoio aéreo ou de artilharia de Aldeia Formosa. Mas eles, rindo à gargalhada, aceleraram o jeep e desapareceram na picada.
Foram quilómetros em que o jeep voava sempre que a estrada o permitia, ou, em lentidão de desespero, contornava buracos de explosões anteriores de minas.
Passada mais de uma hora de percurso, começaram a ouvir os motores das viaturas da coluna que regressava já de Gandembel com o ilustre visitante. Foi com espanto, mas também com alívio, que os picadores descobriram o jeep e os dois "senhores"nele sentados.
O comandante da coluna decidiu então, visto o jeep ter passado há tão pouco, colocar todo o exausto pessoal nas viaturas e arrancar de imediato.
Invertendo o Jeep, o Alf. e o Fur. estavam agora à cabeça da coluna.
Quando se preparavam para arrancar, o Sr. General num impecável camuflado, engomado, e ainda cheirando a armazém, e que até então tinha seguido numa viatura pesada, das últimas da coluna....por questões óbvias de segurança pessoal.......dirigiu-se-lhes dizendo:
-Estou farto de apanhar pó da picada, e o banco do vosso jeep sempre é mais confortável! Sentou-se de imediato no jeep ao lado do condutor.
-Pois com certeza meu General! Foi a resposta do Alferes, com um sorriso amplo, e continuando a empunhar o descomunal machado Fula. E o jeep arrancou, a boa velocidade, à cabeça da coluna, em direcção a Aldeia Formosa.
Foi só quando já tinha atingido os primeiros destacamentos, largas dezenas de quilómetros depois, e perante alguns comentários "apoplécticos" quanto à "inconsciência criminosa" dos dois subalternos, por parte do responsável operacional, que o Sr. General aparentou ter tido consciência de que tinha viajado todo o percurso de um dos mais perigosos itinerários da Guiné de 68, na posição de "rebenta minas",e protegido, unicamente, por um machado Fula.......de cerimónias! (Escusado será dizer que o jeep, manobrando mais facilmente na picada esburacada, de imediato tinha deixado muito para trás as restantes viaturas com a escolta especial do Sr.General!) Stockolm.Jan.80. Aqueleabraço
(1) Mampatá Forreá e Chamarra (2) Chamarra
TARDE DE DOMINGO COM SORTE. Por J.Teixeira
Trinta e sete anos depois do regresso reencontrei o camarada Nuno Rosa.
Para além da grande alegria pelo encontro, selada com um forte e comovido “aperta costelas”, surgiram logo de imediato as estórias do costume.
Lembras-te daquele ataque … e daquele… das formigas que nos acordaram de noite … das malditas abelhas… etc, etc.
Algumas das estórias já estavam no sótão da memória, provavelmente cheias de pó. Outras, continuam activas a bailar no consciente, só que há pormenores que nos escaparam.
Assim as estórias tomam outra dimensão, talvez mais realista e sobretudo, após este desfiar de “flashes” por vezes bem dolorosos, acabam por se deslocarem para o sótão, até ao descanso eterno do “guerreiro”.
Estávamos em Buba, no fim do Verão de 1969. O Joaquim Agostinho, com 26 anos devorava etapas na Volta A Portugal. Era o ciclista prodígio, o fora de série que tinha sido descoberto em Torres Vedras. Como o grosso do pessoal da C.Caç.2381 era Ribatejano, não se falava de outra coisa na caserna.
Era domingo. Logo após o almoço, depois de um Sábado passado em patrulhamento para os lados da bolanha dos passarinhos, surge nova ordem de mobilizar para novo patrulhamento para os lados de Sinchã Cherno e emboscar algures na estrada que se andava a construir até Aldeia Formosa (Quebo), muito perto do local onde cerca de um mês antes tínhamos sofrido uma emboscada, junto a um campo de minas, uma das quais roubou a perna ao Miguel. ( Este, logo após o acalmar do fogo levantou-se e . . . descobriu que estávamos a pisar um campo, onde foram levantadas 27 minas A.P. e localizados buracos, tipo campas abertas com cruzes e com papeis escritos do género. “ tugas é isto que vos espera”. “Ida para a vossa terra” etc).
Bolsa de enfermeiro às costas, cantil cheio. Os efeitos da “velhice” não só dava, em resultado das experiências vividas, para um redobrar de atenção e um poder de reacção e desenrasque maior, como também, em certas ocasiões para um aventureirismo exagerado com graves riscos para a pele.
Naquele dia, partimos à desportiva, bem dispostos, bem bebidos, quando muito, chateados pelo quebrar da rotina, pois em Portugal ao domingo não se trabalha. No primeiro local seguro (?) que encontramos, montamos tenda, quer dizer, a emboscada e preparamo-nos para ficar ali o resto da tarde.
De repente ouve-se um tiro muito perto e o ruído de algo a cair de uma árvore.
Como “velhinhos” ficamos quietos na expectativa, apenas redobramos de atenção, e eis que surge um dos furriéis com um magestático pato bravo, com seis/sete quilos, que o mesmo tinha abatido a tiro de G3.
A isto chama-se brincar em serviço, pelo que, levantamos de imediato a embosca e partimos para outro sítio algures mais à frente.
Sem saber que estávamos a cair para a boca do lobo, lá nos colocamos de novo em posição de combate. Agora sim, um pouco abandalhados. O homem que levava o prato do morteiro 60 não ficou junto do morteiro e o municiador do lança roquetes trocou o lugar por mim.
O Nuno com o seu colete de roquetes estava preocupado, pois faltava-lhe o municiador, o qual também trazia uma fornada de granadas. Ao comentar a sua preocupação eu respondi-lhe: Não te preocupes que se os turras atacarem eu minicio-te.
O IN que estava emboscado um pouco à frente, deixou-nos pousar e aproximou-se com cuidado ( Creio mesmo que se avançássemos mais uns cem metros, tínhamos caído no seu campo de mira).
De repente o ambiente aqueceu com o IN a cair em cima de nós com toda o seu potencial de fogo, ao qual se segui a nossa resposta rápida.
Uma das primeiras roquetadas IN foi rebentar numa árvore por cima da minha cabeça. Os seus estilhaços barreram as folhas das árvores e este camarada procurou de imediato um lugar mais seguro.
O roqueteiro bem olhou para trás, à minha procura, mas eu tinha voado para junto de uma árvore, mais segura Acabado o desafio, um autêntico Porto/ Benfica de que resultou um empate, ambos os contendores pensaram em fugir, o que foi a minha sorte.
Chega-me a informação de que há um ferido. Logo me aproximo e verifico que o homem do morteiro, não hesitou em enviar umas morteiradas, colocando o cano do morteiro na terra mole, de que resultou ter ficado com um rasgão na mão, pois o morteiro ao enterrar-se pelo impacto, pela terra dentro deixou marcas.
Passo a palavra de que há um ferido ligeiro e logo ali me disponho a fazer o tratamento como era o meu dever. O alferes é que não esteve com meias medidas e decidiu retirar de imediato.
Acabado o tratamento, logo verifico que estávamos sozinhos. Duas hipóteses, ou ficar quietos, aguardar algum tempo e depois regressar a Buba, ou correr atrás dos camaradas que iam a 400/500 metros algures na mata !
Como já era fim de tarde, resolvemos procurar seguir os colegas, que entretanto, para mais rapidamente se afastarem, seguiam já na estrada que se avistava ao longe. Até porque ouvíamos ruídos e vozes por perto ( penso que era o IN a afastar-se, caso contrário podiam ter feito“ronco” e apanhar-nos à mão ou enviar-nos para casa no sobretudo de madeira).
O nosso roqueteiro. O Nuno Rosa, relembrou-me agora, que na altura teve um pressentimento de que estava a ser seguido e olhou para trás. Dois dos seus colegas vinham lá longe. Então ajoelhou, colocou as últimas granadas, pois como bom ex-comando, nunca gastava todas as munições que levava, e, bateu a mata que ficava à nossa retaguarda, impedindo o IN de qualquer veleidade.
Os outros camaradas continuaram apressadamente o seu caminho com o alferes à frente e o Furriel a sonhar com o arroz de pato, que nunca mais largou
Assim ficaram três homens desarmados, no meio da mata; um morteiro sem granadas, um roqueteiro sem roquetes e um enfermeiro, num fim de tarde domingo que toda a gente queria calmo e pacífico.
Quando em 2005 tive oportunidade de voltar à Guiné, estive muito próximo deste lugar, mas confesso que nada me veio à memória. Obrigado Nuno por teres partilhado esta aventura comingo.
UMA MÃO NA GAITA, OUTRA NA CATANA por J. Teixeira
A sorte bafejou-me durante uns meses, ao ser destacado para acompanhar o Grupo de Combate que se fixou em Mampatá Forreá.
Tabanca pequena de gente simples de maioria Fula e Mandinga, que nos recebeu de braços abertos e durante cerca de seis meses me permitiu passar o que hoje considero, umas pequenas férias em pleno meio da guerra, rodeado por Aldeia Formosa, Gandembel, Guiledje, Gadamael , Mejo, etc.
Locais onde havia “festa da brava” em contínuo, que nós escutávamos em silêncio e expectativa , enquanto eu, apenas fui visitado umas cinco ou seis vezes, pese embora tenham sido momentos muito difíceis, que superamos sem grandes percalços, a não ser um belo dia em plena hora de almoço, em que tentaram apanhar-nos à mão e chegaram a entrar dentro da barreira de arame e queimaram onze moranças.
Bajudas bonitas e afáveis. Até à data ainda não encontrei na minha vida mulher mais bonita que a Fátma Baldé, a minha “lavandera”, a Djubae ou a Dada, filha do régulo Aliu Baldé, hoje casada com o Régulo de Sinchã Sambel (Saltinho) onde tive o prazer de a encontrar e abraçar em 2005. Sempre bonita)
Assumi a minha missão de enfermeiro, montando diariamente a enfermaria “estrela”, nome que lhe dei, pois não passava de uma pequena mesa e um banco debaixo de uma árvore onde colocava as “mésinhas”: adesivos; compressas; ligaduras etc.
Os medicamentos tinha de os guardar, pois faziam milagres de tirar dores “di bariga” dores “di cabeça” “ramassa” (diarreia) “kurpo kente” (Febre) ou” turse” (tosse).etc.etc.. Todos os dias lá apareciam, sobretudo bajudas e mulheres à caça do comprimido para… hoje era barriga, amanhã era cabeça, outras vezes pediam para levar e tomar na morança, ou seja era para outra pessoa.
Havia também as pequenas feridas, as feridas crónicas (chagas) por falta de tratamento em devido tempo, os entorses etc. combater o paludismo nos militares brancos, no grupo de combate de milícias ou na população era a minha grande preocupação e os resultados foram satisfatórios, pois durante seis meses ninguém morreu com esta doença, bem pelo contrário safei duas crianças, de morte certa, como já referenciei no “diário”.
A par desta missão cabia-me, durante a noite, passar uma hora, a visitar os sentinelas de serviço, nos respectivos postos, em parceria com os furriéis e o Alferes, com o objectivo de os ajudar a passar o tempo e garantir a atenção necessária ao meio envolvente de onde o IN poderia estar à espreita.
Estava cerca de dez minutos em cada posto em conversa com o colega de serviço e lá partia para o posto seguinte. Por precaução e segurança da pele, fazia os percursos cruzados de modo a nunca caminhar perto da barreira de arame farpado.
Uma noite, daquelas em que estava tão escuro que não se vê um palmo à frente do nariz (como se diz na minha terra) atravessava a Tabanca, com uma G3 emprestada, (não tinha arma atribuída por opção própria e quando saía para o exterior em serviço, apenas levava a bolsa de enfermeiro) em direcção oposta ao posto de sentinela de onde tinha partido, com todo o cuidado para não esbarrar com uma árvore, que sabia existir naquele lugar, quando esbarro com algo que se mexe.
Só tive tempo de gritar – tem calma é “Fermero Tixera” ki passa, e, logo ouço uma voz “tu tem sorte fermero, djobe ! (repara). Era nem mais nem menos um dos milícias, meu amigo que tinha saído da sua morança para deitar a árvore abaixo ou seja urinar e por segurança trazia uma catana, isto é, estava com uma mão na gaita e outra na catana, para o que desse e viesse.
A catana estava bem no alto pronta a cair sobre a minha cabeça.
Com “fair play” “retorqui: sorte na tem bó, djobe, nha G3 stá tiro a tiro (falso).
Ehhh fermero di caradjo ! pára lá ! a mim amigo di bó. Amigo memo.
Seguiu-se um afável “parte mantanhas”.
Ele, possivelmente foi empernar com uma das duas lindas mulheres que tinha, na esteira onde algumas vezes nos deitamos a três, ele, eu e uma das mulheres, para conversarmos sobre a Lisboa (Portugal continental), até a noite se perder pela madrugada.
Eu segui o meu caminho para o posto do colega que estava de sentinela, uns metros à frente e que não dera por nada.
Zé Teixeira
ÀS VEZES ERA PRECISO TER VACA
Num dia, após um ataque a Aldeia Formosa, que começou cerca das 17.30 e acabou altas horas da madrugada, o Caco Baldé, apareceu por lá para apreciar os estragos, que felizmente para os militares tinham sido nulos e ao comentar com o comandante da guarnição o local de onde o IN. tinha atacada, comentaram que possivelmente tinha havido apoio logístico de uma tabanca colocada para lá da fronteira.
O Homem do monóculo, só fez uma pergunta – Nunca te lembraste de apontar para lá os obuses ?
Claro que nessa noite foi um corridinho de granadas de 18 Kg naquela direcção.
Eu guardei a frase e quando em Mampatá, se comia arroz com arroz, enquanto as vacas do” homem grande” se deliciavam a pastar entre os arames farpados de protecção da tabanca.
Ao fazer a ronda nocturna notei o tilintar de garrafas e perguntei ao sentinela o que se passava.
É uma vaca que anda por aí, respondeu-me ele, não há perigo.
Havendo perigo ou não, resolvi imitar o Caco e dizer-lhe: já pensaste em mandar para lá um tirito, ninguém sabe se está lá uma vaca ou um “turra” e assim amanhã teríamos banquete do bom.
Após alguns minutos de conversa em surdina, para o ajudar a passar o tempo, parti de novo e embrenhei-me pelo interior da tabanca em direcção a outro posto de sentinela.
Surgiu um tiro, sem resposta imediata, a assustar a noite e eu deixei-me sonhar com o saboroso bife que no dia seguinte teria no prato… se o sentinela tivesse acertado na vaca.
Ao chegar junto do outro o camarada estava tenso e preocupado, um tiro, no silêncio da noite era mau presságio, “eles” estariam por perto. O tiro talvez fosse o sinal.
Acalmei-o como pude, sem lhe contar a conversa tida momentos antes.
No dia seguinte, ninguém soube explicar, mas apareceu uma vaca coxa.
O Aliu Baldé, chefe de tabanca e Alferes de 2ª linha, armou grande barafunda, pois tinha perdido uma vaca e queria saber quem a feriu, para levar o justificado castigo. Como ninguém se acusou e . . . para não perder tudo vendeu-nos a vaca pelo preço da chuva.
O almoço sonhado ia acontecer. Só que o IN, também queria tomar parte no banquete e fez-se convidado.
À hora, prevista, lá estava junto à 2ª cerca, sabendo que a fome e o apetite por um bom bife eram factores que nos iriam criar possíveis desatenções. Tal aconteceu de facto.
O Sol já ia alto e queimava os dorsos descamisados. O amanho da vaca foi longo e atrasou o esperado almoço.
Os jagudis, no cocuruto das árvores espreguiçavam-se e afiavam o bico. Também eles se fizeram convidados.
Toda a gente fazia fila junto ao grelhador onde crepitava o fogo, enquanto o Valente virava e revirava os bifes e o Alves aprontava as estaladiças batatas fritas.
Os grandes e apetitosos nacos de carne eram um regalo para os olhos. Pelas narinas subiam odores que inebriavam o cérebro e faziam sofrer o estômago, pela longa espera do tão esperado pitéu.
Numa mão a marmita, na outra o copo de vinho fresco, enquanto a cerveja (complemento mais que necessário) se escondia no bolso e o IN à espreita, junto ao arame farpado.
Os postos de sentinela foram desguarnecidos. Apenas o Silva algarvio ficara no seu abrigo, devido a forte dose de paludismo.
Os putos, pulavam a nossa volta de olhos arregalados. Também eles iam ter “restos melhorados”, como paga por nos lavarem as marmitas.
A população(1) escondia-se do sol dentro das moranças e espreitava a festa que o “baranco” fazia.
De repente os “putos” desaparecem. O silêncio impera. Apenas a nossa algazarra de gente feliz, que antevia um lauto banquete.
Começa a distribuição com o Valente a resmungar “calma que chega para todos”.
Eu esperava pacientemente com a Maimuna ao colo, que chegasse a minha vez. Tinha já surripado umas febras e bebido uns copos (vantagem de enfermeiro).
Os primeiros felizardos, contrariamente ao que sempre faziam – irem de imediato para o seu posto de sentinela – sentam-se à sombra do gigante poilão e começam a saborear o petisco, quando se houve uma rajada de G3 e logo de seguida como que por encanto de todos os lados da tabanca, surgem costureirinhas a vomitar o seu temido trac trac, seguindo-se o troar dos rebentamentos do morteiro 60 e das bazucadas Os bifes as batatas fritas voaram pelo ar.
Toda a gente a correr para os postos. Há correr com os malandros que nos querem estragar o almoço.
Felizmente o Silva algarvio, deitado à porta do abrigo, esperava que alguém lhe levasse o seu almoço, para o qual não teria apetite tal era o seu estado de saúde.
Estranhamente vê uns vultos de uniforme diferente, aproximarem-se da cancela em arame farpado, abri-la e tentarem esconder-se por detrás de uma morança.
Nem hesita em abrir fogo, provocando a enorme barafunda que se seguiu. “Eles” tinham o esquema bem montado. Concentraram as suas forças de penetração na entrada da picada para Buba e na entrada da picada para Cumbijã.
Do lado de Aldeia Formosa, estavam emboscados perto de Bakar Dado, para impedir a chegada de eventuais reforços.
Em redor de toda a Tabanca estavam atiradores isolados que faziam fogo de costureirinha, com balas incendiárias, para desviar as atenções, enquanto, outros, forçavam a entrada, nos portões.
Atingiram onze moranças que de imediato começaram a arder aumentando a confusão. Atingiram também o paiol das munições, o que naturalmente originou um festival de rebentamentos.
Tal como entraram, rapidamente tiveram de sair, ao sentirem-se descobertos, perante a reacção da nossa gente bem apoiada no pelotão de milícia, comandado pelo Chefe de tabanca, Alferes Aliú Balde (2) que coordenou de peito aberto a defesa, do portão de Cumbijã, de morteiro 60 na mão(3).
Logo de seguida dirigiu-se ao portão de Buba e continuou a festa.
Um verdadeiro herói, que tanto quanto soube faleceu em combate cerca de dois anos depois, também na defesa de Mampatá, quando a zona aqueceu, com a reabertura de frente de Colibuia e Cumbijã.
Estranha foi a minha reacção. Assustado com o “fogachal “ e as labaredas que surgiam de todos os lados das moranças a arder, em lugar de me proteger e aguardar pelo fim da contenda, como era e continuou a ser, meu hábito, larguei a bebé, no abrigo do posto de rádio e desatei a correr pela tabanca, perguntando aos gritos, se havia feridos.
Recordo-me bem da razão do meu estado de espírito: Tinha comigo apenas dois frascos de soro, algumas agulhas e linha de sutura, meia dúzia de Zimema K e pouco mais.
Entrei em pânico.
A estrada para Aldeia Formosa, estava cortada pelo IN e eu senti-me sem nada para poder valer aos colegas e à população. Foram vinte minutos terríveis, que se saldaram num grande susto e . . . moranças queimadas, pois nem um ferido para amostra.
Já estou apanhado! Foi o meu pensamento intimo, logo depois e que me obrigou a rever a forma de estar nos teatros de guerra que se seguiriam.
A nossa reacção obrigou o IN a refugiar-se rapidamente na mata e continuar a flagelação, mas um tanto descontrolada.
Tudo acabou em bem. Apenas se atrasou um pouco a hora da petiscada, repetidas nos dias seguintes, mas agora com cuidados redobrados.
Afinal tivemos a “vaca” da sorte a protegeu-nos para que pudéssemos saborear a vaca verdadeira.
Como resultado extremamente positivo para a minha pessoa, foi a forma como a partir daquela altura a população em geral me acolheu e o carinho com que me tratavam. Se já era bom, ficou excelente.
Tempos mais tarde, quando a Companhia recebeu ordens para seguir para Buba, ficando apenas um Grupo de Combate, na Chamarra, por mais algum tempo, enquanto Mampatá Forreá, era reforçado com 2º pelotão de milícia e tropa estacionada seguia também para Buba.
O Chefe de Tabanca, foi pedir ao Comando em Aldeia Formosa, a minha continuidade em Mampatá, o que foi recusado. No entanto fui colocado na Chamarra com o compromisso de vir duas vezes por semana a Mampatá, tratar a população e ensinar o “enfermeiro” africano que lá foi colocado.
Ao procurar saber das razões, do interesse em mim, a Jobo (Maria) disse-me: naquele dia em que fomos atacados na hora do almoço, vimos Fermero a correr debaixo de fogo, para junto dos abrigos da população a perguntar se havia feridos. Fermero é amigo da gente.
Quando cerca de mês e meio depois, deixei definitivamente a zona, ao passar por Mampatá, deixei algumas emocionadas lágrimas para regar aquela terra tão linda, ao receber as despedidas com abraços beijos e cânticos e uma população amorosa, com quem tanto aprendi em cerca de meio ano de convivência.
. . . E lá ficou a minha Maimuna, a bébé que ensinei a andar, que me seguia para todo o lado e que partilhou este drama comigo.
Também lá ficou a outra bébé, a quem salvei a vida, quando regressada de Bissau com 42 ºde temperatura e desenganada pelo médico, eu a recuperei. A Mudjer de fermero como a mãe teimava em afirmar. Veio trazer-ma na despedida. Queria que a levasse comigo – Tua mudjer, leva minina.
Quantas vezes me levou uma caneca de água fresquinha, trazida da fonte, que ficava para além do perímetro de segurança da Tabanca. – Mudjer de fermero na bai buská água pra fermero
Quantas fezes vinha com um cacho de bananas à cabeça – Mudjer de fermero, parte banana.
Se à noite me descuidava e não ia dar um beijinho à bebé, quando passava à porta, a caminho do meu abrigo, fosse a que horas fosse, lá estava a mãe – fermero tu ká na vem parte mantenha a tua mudjer !
Entrava dava um beijo e ficava conversar até às tantas, em família.
Os pesadelos, que me perseguiam, de arame farpado, sinal impeditivo de liberdade e de perigo que rodeava as aldeias, das emboscadas, dos ataques dirigidos a nós “tugas” mas que afectavam aquela gente indefesa, dos feridos que tratei e dos que vi morrer sem poder ajudar, dos que morreram sem a mais pequena hipótese de se safarem, dos momentos de ansiedade que vivi, tudo se tem vindo a dissipar, mas a imagem das duas crianças no meu colo, com as mães abraçadas a mim, vai-me acompanhar sempre, porque retrata e reflecte os momentos mais belos, da minha passagem pela guerra.
Zé Teixeira .
(1) Creio bem que estava avisada e refugiou-se nos abrigos, e, só tal facto impediu que houvesse mortos e feridos, tal a proximidade (2) Tive o grato prazer de reavivar a sua memória, quando em 2005 reencontrei a sua filha Naná, mudjer do actual régulo da tabanca de Sinchã Shambel (ele mesmo, também milícia em Mampatá no meu tempo), que resultou do reordenamento de Contabane, após a destruição desta tabanca na noite de S
QUANDO NÃO SE ACAUTELA A VIDA, A MORTE PODE ESPREITAR Por J.Teixeira
Nos princípios de Março de 1969, os trabalhos da construção da estrada de Buba para Aldeia Formosa, iam decorrendo sem grandes problemas, aparte uma emboscada de vez em quando ou umas A.Cs e A.Ps detectadas em tempo útil. Todos os dias, homens e máquinas, deslocavam-se de Buba, até ao local onde tinham ficado no dia anterior e o trabalho continuava. Partia-se de manhã cedo, faziam-se 8 a 10 Km para lá e ao fim do dia, novamente a marcha de regresso, sempre no fio das navalha. O IN ousou estudar bem o terreno por onde ia passar a estrada e colocar uma potente A.C. no interior da mata, de modo a fazer ir ao ar o “caterpillar” de 14 toneladas, quando este se preparava para investir sobre uma arvore gigante para a derrubar, o que aparte o ferimentos ligeiros que provocou no operador e um susto ao alferes que, sentado no “lugar do morto” em amena cavaqueira procurava queimar o tempo, deu-nos uns dias férias, o que não foi nada mau. Este vai-vem diário tornou-se extremamente cansativo e esgotante, tendo deixado a minha companhia reduzida a 36 operacionais activos. A C.Caç 2317, oriunda de Gandembel ( do Idálio Reis) , bem como a C.Caç 2382 iam pelo mesmo caminho. Julgo de interesse lembrar, que também estavam estacionadas em Buba, a 15º de Comandos e uma de Fuzileiros. Era um fartote de combatentes, o que provocava a apetência do IN para nos ir visitar. Era de dia no mato, era à noite, de madrugada ou manhã cedo no aquartelamento. A juntar a este cenário, o barco que nos ia levar mantimentos foi metido ao fundo, ficando esta gente, uma temporada, a comer arroz com amostras de chispe ao almoço e amostras de chispe com arroz ao jantar. Fomos visitados pelo “olho de vidro e pingalim” que nos fez um discurso à sua maneira, tendo em determinada altura afirmado, mais ou menos isto “ Sei quanto está a ser difícil aguentar esta vida, mas é a Pátria que o está a exigir. Quando vos derem grão cozido, fechai os olhos e imaginai-vos em Lisboa a deliciar-vos com o belo peru recheado , ou uma lagosta suada (fiquei a saber que as lagostas também suam). Assim será mais fácil para vós, comer o grão. Precisais de comer para aguentar e sobreviver. Bla bla, bla…. O resultado da sua visita, foi transferir o centro de operações da estrada para um acampamento de lona em Samba Sabali, antiga tabanca abandonada, perto de Nhala, (onde hoje existe uma simpática povoação) onde havia um poço de água choca e lamacenta que nos permitiria refrescar o corpo. Arroteada a terra, construída a paliçada com muros de terra e sacos cheios de terra, eis um moderno quartel, arejado, com cozinha, bar, e enfermaria ao ar livre, camas excelentes para combater os bicos de papagaio, pois a terra do chão estava macia, e, uma redondeza bem preparada para um cerco fácil a um pequeno espaço, sem luz eléctrica e com um grau de densidade populacional elevadíssimo. Três Gr. Comb. em quatro tendas tipo hospital de campanha, em redor, com um pequeno pátio no meio. Dois grupos de combate saíam para estrada e um ficava no acampamento, no dia seguinte, um ficava no acampamento e . . . dois seguiam para a estrada e ainda tínhamos a noite sem luz para o que desse e viesse. Felizmente, quinze dias depois, apareceu uma Companhia de “Piras” e como não cabíamos todos, abalamos para Buba, cansados, sujinhos até à medula, a roupa, já não tinha cor, tanta era a terra encardida. Apenas conheci de nome uma pessoa, o Banha, Cabo enfermeiro a quem passei o equipamento de enfermagem que havia. Foi para mim o adeus à estrada, pois uns dias depois regressei a Empada e só lá voltei em 2005 para matar saudades. Uns dias depois, segunda feira de madrugada, lá parti para uma das últimas patrulhas, com montagem de emboscada e regresso ao fim da tarde. Ao anoitecer e quando nos preparávamos para o regresso, rebenta um tremendo fogachal em Samba Sabali, eram as boas vindas aos “periquitos”, logo num quartel de lona sem condições mínimas de defesa e segurança. Pelo rádio ouvíamos as notícias e ainda houve tempo de recorrer á F.A. para calar o IN, caso contrário… Um morto, três feridos graves e cinco menos graves, creio eu, foi o resultado da refrega. A distância a que estávamos era relativamente longa do local do ataque, no entanto face à impossibilidade de o Helicóptero não poder aterrar por ser noite e por não haver local próprio, foi necessário fazer seguir uma coluna de socorro a partir de Buba. Como estávamos no terreno, recebemos ordem para seguir para a “bolanha dos Passarinhos” ou seja a Lagoa de Cufada, sítio, historicamente, de passagem não recomendada, sem as mais elementares cautelas, por ser um espaço muito conhecido pelas minas e emboscadas que o IN aí montava, proveniente de Sare Tuto, ali mesmo ao lado, aquando das colunas de, e, para Nhala e Aldeia Formosa ( Quebo). Como era preciso proteger a coluna que partira de Buba, abalamos. Noite escura, de peito aberto, em passo de corrida acelarado, estômago vazio e garganta seca (tínhamos saído de madrugada com ração de combate para o almoço e prevíamos chegar a tempo de jantar), lá fomos nós estrada fora, até ao local que nos fora destinado. Já próximo embrenhamo-nos na mata e estacionamos precisamente no local, onde era hábito termos uma espera desagradável. A coluna passou e regressou. Ainda ouvimos ruídos à nossa retaguarda e um tiro isolado, sem consequências. Apanhamos as últimas viaturas e regressamos a Buba. Eu segui para a enfermaria para continuar a minha missão em apoio dos meus colegas enfermeiros, e, . . . encontrei o Banha. Estava morto, com um tiro de costureirinha na testa. . . .
O NATAL EM EMPADA por J.Teixeira
Contráriamente ao Natal vivido em 1968 em Mampatá Forrea, O Natal do Silêncio em que apenas as rabanadas cozinhadas com todo o carinho pelo pelo grande Valente, atirador transformado em cozinheiro à força mas que deu conta do recado de forma excelente, aqueceram um pouco o ambiente, mais as canhoadas que se ouviam ao longe, se "bem me lembro" Guileje e Gamdembel. O Natal de 1969 foi uma festa, em que o perigo foi desafiado mas valeu a pena. 1º Já cheirava à "peluda" éramos velhinhos com 18 meses de guerra, estavamos totalmente apanhados pelo clima. 2º Empada estava mais ou menos calma, apesar de no último ataque uns dias antes termos sofrido um morto de forma algo bizarra, como conto no "Meu diário". 3º Foram criadas algumas condições anímicas para que fosse realmente uma festa. O Capitão Moutinho Santos, desafiou a esposa a vir passar o Natal connosco e esta aceitou - Uma mulher branca no nosso meio, mesmo sendo a do esposa do capitão foi "manga de ronco". A festa da recepção foi de arromba, - Não faltou o "autocarro do amor" com o respectivo coro, onde a senhora entrou de imediato ( quem não se lembra desta célebre canção -era a coqueluche da época). A Televisão esteve presente com um excelente camara men, o "je". Depois veio o jantar a rigor, com bacalhau com batatas, vinho e cerveja q.b. e muita música.Foi até cair. Uma bela noite para recordar em que faltou a animação do costume, felismente.
VIVÊNCIAS NUM PAÍS EM GUERRRA por J.Teixeira
Conheci e vivi histórias engraçadas. Periquitos (pássaros e não militares recém chegados ao teatro de guerra) a quem se cortava o bico ou se desafiava a picar a chama do cigarro para ganharem medo e não picarem o “proprietário” e os amigos e que se tornavam uma paixão assolapada do seu dono, chegando a gerar conflitos entre camaradas. Macacos “saguis” ao ombro, e, ai de quem se aproximasse ou fizesse um gesto de agressão ao “patrão”. Tinha o macaco à perna. Cães amestrados como o “parafuso” que corria atrás de um arco, metia a cabeça e trazia-o de volta pendurado no pescoço. Embalsamadores de passarinhos que os punham em exposição na caserna e depois vinha um gato atrevido e . . . Agora segue-se a minha pequena colecção de camaleões. Comecei por passar horas a observar as diversas camisas que vestiam ao mudar de ambiente. Achei imensa graça e cacei uma meia dúzia. Amarrei-lhes uma linha de costura a uma pata e prendi-os a um pau junto a um charco. Durante alguns dias, foram a minha distracção e a alegria da pequenada. Divertíamo-nos a apreciar as cores que tomavam face ao local onde se encontravam e sobretudo à sua capacidade de caçar insectos e formigas com a grande língua bifurcada . Foram baptizados um a um, pelo seu tamanho, já que quanto a cores ou outros pormenores . . . tinham sido criados segundo o mesmo modelo de série e mudavam de camisa enquanto diabo esfregava um olho. Era um espectáculo. Os putos tinham medo de pegar neles, pois que na sua defesa bufavam e assutava os miúdos. Faziam-se apostas sobre qual o mais rápido a apanhar a mosca ou insecto que aparecesse. Buscavam-se folhas e cascas e árvores, pedregulhos e outros adereços para provocar a sua mudança de cor. Até que apareceu, possivelmente, uma cobra e . . .teve um lauto banquete.
O EMBALSAMADOR AMADOR Por J.Teixeira
Conheci em Buba um camarada de vila do Conde que se dedicava a embalsamar pássaros. Procurei saber que produto químico usava. O químico era “formol” produto letal, logo perigoso. Decidi requisitar um frasquinho ao Laboratório Militar e estranhamente fui atendido. Então cacei um pássaro daqueles muito pequeninos que aparecem aos milhões e são muito coloridos. Enfiei-lhe o “formol” e o gajo esticou o pernil, e ficou “em conserva”. Mais uma arte do “fermero”. Encantar passarinhos que não fugiam quando os putos o tentavam assustar. Durante cerca de quinze dias, logo de manhã lá o punha num ramo de árvore junto à enfermaria em Chamarra. Até que apareceu um gato e záz. O pobre passarito apareceu dois dias depois, em mísero estado de conservação, pois o gato perdeu o apetite e limitou-se a brincar com o gajo. Valeu pelo funeral que lhe fiz com toda a pequenada.
VITAMINAS QUE PROVOCAM O ABORTO Por J.Teixeira
Em Empada uma das coisas mais gostosas que a tropa gostava de fazer era ir até à fonte apreciar as bajudas no banho, à falta de melhor e com um bocadinho de sorte aparecia uma ou outra que vestia apenas o facto que a mãe lhe tinha dado ao nascer. Para alguns camaradas “virgens” aquilo era sopa da boa. A Fátma, (mais uma das muitas Fátmas que conheci na Guiné, abeirou-se de mim: Fermero parte quinino pra matá minino que na tem na bariga ! Como ? Minha tio brinca e faz minino na bariga di mim. Tem pacensa, parte quinino ! Quinino ká tem, vai na mudjer grandi, ele trata di ti. Nega mesmo, mudjer grandi ká na tem quinino. Tu tem quinino. Olha vou pensar nisso, passa amanhã pela enfermaria Tem de ser hodje. Parte quinino. Segui-me até à enfermaria e eu sem saber o que fazer para afastar a chata, que ainda por cima era daquelas poucas feias, que por lá apareciam e de quem todos nós nos afastávamos. Bem, para grandes males grandes remédios. Se estava grávida, nada como lhe dar uns comprimidos de vitaminas. Mal não faziam. Talvez o milagre se desse . . . Quinze dias depois, lá fui eu até à fonte passar um pouco de tempo e treinar uns apalpos, nem sempre bem sucedidos, quando a Fátma aparece. Estou tramado, aí vem a chata… Qual quê ! ao ver-me, desata a correr para mim toda contente. Fermero minino na vai. “Coisa” (1) na tchega mesmo. Tu bom pessoal. Ganhei mais uma amiga e juntei à fama de curandeiro, e milagreiro, mais uma. Aborteiro (1) menstruação
O BALANTA QUE FUGIU À SERINGA por J.Teixeira
Em Mampatá Forreá, os dois únicos balantas que lã conheci ( a população era Fula, Fula futa e Mandinga) eram lenhadores contratados pela tropa a troco de uma marmita de comida diária para cortarem lenha para a cozinha militar. Um deles tinha tanta força como de ingenuidade. Um dia peguei numa faca e disse-lhe que o ia matar. Desatou a correr e eu atrás dele a rir-me às gargalhadas, corremos a tabanca toda. Ninguém sabia o que se passava nem entendia porque quando eu parava, atrás de uma morança, ele parava e se eu começasse a correr ele fugia, por entre as moranças, a rir-se, mas sempre longe de mim. Um bom espectáculo para um fim de tarde de alguém que apenas precisava de queimar o tempo e ainda faltava tanto . . Só paramos, quando deitei a faca ao chão. Depois demos um abraço e . . . fizemos as “pazes” Certo dia acertou com o machado num pé cortando profundamente um dedo. Por pouco não traçava o osso por inteiro. Dirigiu-se à enfermaria “ar livre”, isto é ao cantinho onde todos os dias eu montava o meu engenho de enfermaria. O meu dilema era, completar a obra do machado e sacar o dedo ou tentar suturar na esperança de o osso solidificar. Ou, então, aguardar dois dias pela avioneta do correio e mandar o embrulho para Bissau. Optei pela sutura, lavei muito bem o pé que talvez nunca tivesse sido lavado na vida, e, preparei a seringa para a anastesia local. Ele baixa a “amostra” de calções mais negros que a sua pele, convencido que ia tomar uma injecção. Quando se apercebe que ia ser picado no pé, começa a gesticular que não. No pé não. Claro que eu não sabia balanta, ele não sabia crioulo, nem português. Assim não nos entendíamos, mas ele encontrou a solução. Desata a correr pela aldeia fora com o dedo dependurado e a sangrar. “Pica” no pé nunca, só no traseiro. Passado algum tempo lá voltou. Com a ajuda do companheiro, conseguimos entendermo-nos melhor. Fiz de novo a higienização da ferida, suturei como pude e passados uns dias, com a ajuda de umas “picas” de penicilina lá curou e voltou ao trabalho de lenhador para ter direito a comer ( os nossos restos).
A MARIA TIRA "CABAÇO DI BRANCO" Por J.Teixeira
Quando chegamos a Empada, lá aparece a Maria, mais a irmã, a dar-nos as boas vindas. Rapidamente se soube da sua arte mestria em tirar cabaço a branco e satisfazer as necessidades a quem já sabia da poda, para desgraça da nossa jorna, já de si tão pequena e que se esvaía na cerveja e agora tínhamos a Maria. Um alferes a quem não foi contada a história da pequena, tenta o engate e záz, arranjou namorada que até ia ao quartel, durante o dia e prestava-se para todo o serviço. Ninguém lhe podia tocar, era a namorada do alferes, durante o dia, e, à noite zumba que zumba com toda a gente que tivesse uns patacõezitos para gastar. Até faziam fila e a irmã dava uma ajuda. Houve cenas engraçadas com a Maria tira cabaço. Um camarada e amigo encabaçado, tinha vontade e. . . inexperiência, vergonha, medo, falta de geito, etc. Então foi meter uma cunha a outro companheiro para pedir à Maria para o atender bem. Este foi, meteu a cunha e gozou de borla. O outro pagou a dobrar, isso de tirar cabaço a branco, tinha de ser bem pago ! Tanto quanto pude apreciar até o Nino sabia da sua vida, pois num célebre ataque ao cair da noite, as primeiras canhoadas foram para a casa da Maria, só que os brancos que lá estavam eram “velhinhos” e “voaram ao sentirem o som das saídas do canhão. O pobre do alferes é que quando soube, rebentou de raiva. E, foi uns dias depois, quando foi à sua procura na morança, um dia ao fim da tarde (Talvez a fosse convidar a jantar) e encontrou o lugar ocupado e gente à espera.
A FESTA DA VIDA Por J.Teixeira
Como prémio de ter assistido ao parto, fui convidado a participar na festa da Vida ( Baptismo) do recém nascido. Manhã cedo, juntaram-se em roda, os convidados com as vestimentas mais garridas. Os tantans, (três) vestidos a rigor com instrumentos nas pernas e nos braços, assobio na boca e tambores a jeito. O homem do cabrito acabou de afiar a faca e encosta esta, ao pescoço da vítima. A fogueira está pronta para ser acesa pela cozinheira. Dois pilões cheios de arroz, com três bajudas em cada um, prontas para iniciar a faina. A criança ao colo da mãe e ao lado o barbeiro com uma lasca de vidro laminada proveniente de uma garrafa de cerveja. Por último o Mouro (1) prepara-se, voltado para Meca, para iniciar a oração a Alá. Tudo pronto ? Vamos lá começar. O Mouro inicia um canto e em simultâneo começa a festa. Os tambores e o pilão dão o ritmo. Tudo djenti canta e dança. O Barbeiro inicia a rapadela da farta cabeleira do bebé, enquanto o cabrito dá o último suspiro, pois a fogueira já foi acesa. . . . E a festa dura ,dura até que a noite cai e . . . o Hamadu, sargenti di milíci, aparece e recomenda o silêncio. Bem perto há uma aldeia nas mãos do IN. (1) Coordenador da oração na Mesquita ( Padre) VIDA Ventura da minha vida Ver uma criança parida No momento da chegada. De mãe preta bem pintada. Negro pai, para meu espanto. O raio do puto era branco. (1) Vi-te nascer. Não sei teu nome, não importa. Foste e és esperança, um novo ser Nesta sociedade morta. Lançaste um grito. Alegria. Tua vontade de viver. A esperança a renascer. No meio da dor, como sempre. Em ti, peguei com jeito, Como um pai, que estava ausente. Na guerra, da tua terra. Encostei-te bem ao peito, Teu olhar, que encanto, Ternura, paz, bem estar. A tua pele macia. . . Tua brancura de espantar, Nesta terra, vermelha, queimada, De uma África em sofrimento, Que anseia em cada momento, Como tu. Ser amada. (1) AS crianças de cor, nascem brancas.Começam a escurecer logo que nascem e passados uns dias estão da cor natural. Mampatá, 25/09/1968 © José Teixeira
DÔTOR. BÁ KA NA LEMBRA DI MIM. SOU O MUDÉ !
Por J.Teixeira
Passados largos anos, após o regresso da guerra, recebi um telefonema do Dr. Azevedo Franco, meu querido amigo, médico, que fez grande parte da sua comissão em Buba. Tinha-lhe aparecido no Hospital o Mudé Embaló e não tinha soluções de futuro para o “puto” O Mudé tinha-se iniciado, como ajudante de fermero, com onze/doze anos, na Chamarra, com o meu colega de Companhia, Jorge Catarino que lá se encontrava integrado no seu pelotão. Na minha curta passagem por Chamarra ( cerca de dois meses), pude apreciar o jeito, capacidade de aprender do miúdo. Era muito esperto, educado, sempre disponível e cativante na forma de estar. Dois dias depois do meu regresso a Buba, apareceu-me na enfermaria logo de manhã. Tinha-se metido a caminho pelo mato. Catarino e Teixeira eram os seus ídolos e queria ser fermero. Criou amizades com os outros enfermeiros e com o médico, e por lá continuou quando abalamos para Empada. Chegada a independência, foi para Bissau. Estudou até ao 2ºciclo, mas o seu sonho era vir para Portugal, e estar com os seus amigos. Começou por dar explicações. Assim ganhou algum dinheiro para a passagem de avião. Comprou um cheque em USD que escondeu na sobrecapa de um livro que sempre o acompanhava e desembarcou em Lisboa. O seu destino era o Porto, pois sabia que o Dr. Azevedo Franco morava no Porto. Meteu-se no comboio e chegou a Campanhã. Logo começou a perguntar pelo Dr. Azevedo Franco, até que alguém teve a feliz ideia de lhe indicar o Hospital de S. João. Deste para o de Santo António e por último o de Rodrigues Semide, até que . . . Dôtor. Bô ká na lembra di mim ? Sou o Mudé qui firma na Buba. E agora que vamos fazer com o “puto” dizia-me o doutor ! Tentei empregá-lo num escritório pois dizia-me que sabia escrever à máquina. Tinha trabalhado num escritório em Bissau. Puro engano, levou mais de uma hora a escrever meia dúzia de letras. Alguém conseguiu empregá-lo em Lisboa numa clínica, como auxiliar, mas . . .julgava-se enfermeiro e não estava para fazer os trabalhos próprios da função, muito menos limpezas. Desenrascou-se sozinho e desapareceu. Passados dois/três anos reapareceu com novo problema. A mãe tinha sido mortalmente atropelada em Bissau, um irmão tinha morrido na guerra colonial e o outro, o Sáculo, que eu conheci, pisou uma A.P. Então este, enviou-lhe uma mensagem para ir ao avião buscar uma encomenda. Ele foi, e, a encomenda era a Djubae, a sua irmã com 6 anos. Conseguiu-se que esta entrasse num colégio em Lisboa. Ela fez o 12 º ano e hoje se alguém na margem sul do Tejo tiver o azar de receber ordem de paragem por uma agente da B.T. de cor negra, pode saudá-la com o corpo di Bô ? ou o Ná pinda, pois é a nossa Djubae, agora com um nome europeu, creio que Carla ou Conceição. O Mudé Embaló perdeu-se algures entre Portugal e a Holanda e nem a família que localizei em Sinchã Sambel ( Saltinho) sabe do seu paradeiro. Quanto à Djubae, essa, já lá voltou, toda orgulhosa. Ela tem otoridade em Portugal. Zé Teixeira ©
ÀS VEZES É PRECISO TER SORTE
Por J.Teixeira A coluna arrancou de Buba de madrugada. Dois pelotões tinham partido antes a bater a zona por onde o IN costumava aparecer. Dois pelotões seguiam pela mata, um de cada lado, à frente da coluna para refrear os ânimos dos “nossos amigos” Eu ia com o pelotão dos picadores à frente da coluna. Por segurança, seguia atrás da 1ª viatura, no trilho do seu rodado, pois o seguro morreu de velho e eu não queria morrer tão novo. Dá-se uma avaria numa viatura da rectaguarda e a coluna retém a sua marcha. Os “picadores” seguiram em frente e este vosso amigo sentou-se no sítio do rodado da viatura. Dada ordem de recomeço de marcha, os “picadores “ já iam a quilómetros. Estando o caminho livre, as viaturas acelararam a marcha. A primeira viatura (arrebenta minas) ia carregada de bebidas (1) e sacos de areia à frente e … africanos em cima. Até os assentos eram sacos de areia, o que concerteza não é novidade para os camaradas bloguistas. Para não desatar a correr como fizeram os camaradas da segurança à coluna, sentei-me no lugar do morto, na dita “rebenta minas”, mas de repente tive um rebate de consciência: então tu, que (servindo-te da tua categoria de enfermeiro) nunca deixas ir um colega na 1ª viatura e agora colocas-te lá tu ! e. . . saltei, ponde à frente da viatura em marcha de corrida, para não ser atropelado. Passados uns segundos apenas, dá-se um grande estrondo e sou projectado para o chão. Sinto algo a cair-me nas costas e pensei. Já estou ! é desta que vou de vez ! Espero reacções de dor e nada. Passo a mão pelas costas e trago lama e terra. Alto lá, parece que escapei ! Então começam a chover pretos à minha frente. Três dos que vinha em cima da viatura. Os outro, e eram vários também foram ao ar, mas estavam bem. Felizmente só um se feriu com alguma gravidade e um outro apareceu com um olho ao dependuro (2). A mina rebentou do lado de onde eu tinha saltado uns momentos antes e o condutor foi ao ar e regressou ao lugar de onde saí pela impulsão, sem qualquer ferimento. Fiquei apavorado, sem saber o que fazer. Tinha feridos para tratar, tremia por todos os lados e a bolsa de enfermeiro tinha ficado na viatura. As minas podiam estar lá e estavam mesmo. Lá fui à viatura buscar a bolsa e entretanto apareceu outro enfermeiro. Lavei muito bem a zona ocular do gajo, que estava cheia de lama, coloquei-lhe o olho no sítio e mandei-o para Buba para ser evacuado. Tudo resolvido, o capitão dá ordem de marcha e . . . pum ! uma anti-pessoal rebenta debaixo de um pneu de um atrelado, também este carregado de bebidas. Tinha sido colocada na berma, fora da linha de actuação dos “picadores”. O Atrelado ao desviar-se do buraco feito pela anti-carro foi descobri-la a cerca um metro do sítio para onde eu tinha sido projectado e naturalmente pisada por muita gente, ao atender os feridos e naquela azáfama de sacar bebidas. (1) Logo após o acidente foi um “fartar vilanagem” toda a gente saltou para a viatura e começou a sacar bebidas. Tudo desapareceu rapidamente. (2) Encontrei-o depois em Bissau pude constatar que ficou bem. O nervo óptico, não tinha sido afectado. Zé Teixeira ©
PORQUE FIZ GUERRA SEM DAR UM TIRO
Por J.Teixeira A minha preocupação de durante a Comissão ,foi a de não dar um tiro e a minha alegria foi e é grande por o ter conseguido. Sei que não fui, felizmente, o único a pensar e agir deste modo. Aliás, li algures que alguém operacional de guerra, ou seja, atirador, o afirma também. Não tomei esta atitude por cobardia, naturalmente. Como cobarde fugiria à guerra. Tinha a meu favor o facto de ter ficado “apurado para os serviços auxiliares do exército”, logo, bastaria um simples requerimento para me transferirem para o Hospital em Bissau, onde faria a comissão em beleza. Tinha sido educado para valores e um deles era o direito inalienável à vida. Custava-me e custa-me imaginar que pela facto de vestir uma farda, já podia matar e até correr o risco de ser um herói da Pátria, no entanto, enquanto civil, se tal acto cometesse era um assassino, com a cadeia à minha espera. É certo que podia descansar a minha consciência, pois segundo dizia os “senhores da terra” seria em defesa da sagrada Pátria. É certo que em ambiente de guerra, ou se mata ou se morre. É certo que em ambiente de combate, o controlo emocional vai-se e se cometem actos que em ambientes normais nunca se cometeriam. Confesso que fiquei admirado comigo mesmo, quando caí debaixo de fogo pela primeira vez, logo após o choque de ver morrer um camarada que não conhecia, sem eu, o enfermeiro, lhe poder valer. Peguei na G3 e tentei abrir fogo para a copa da árvore donde saiam as balas assassinas que procuravam atingir-me. Como escrevi na altura no meu “Diário” a bala recusou-se a sair, o cano rasgou em quatro e eu mantive assim o meu princípio. É certo que quando se parte para uma guerra, muito poucos o fazem por vontade própria. A esse dá-se o nome feio de mercenários. Era o sentido do dever para com a Pátria. Valor que nos era insuflado desde o berço, ferozmente activado, desde a primária, e alimentado pelos “senhores da política” e de uma certa Igreja – “O Orgulho de sermos um País no cantinho da Europa, mas muito grande e pluri-racial, com Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique e Timor. E ainda nos “roubaram” a Índia, senão … É certo que o sentido de pátria soava bem alto e a que nos prometiam passava pela Guiné, mas . . . seria que a Guiné era mesmo Portugal ? Os seus habitantes e os “senhores das terra” locais, tinham essa noção e esse orgulho como nós ? Ou não seria que o poder das armas e outros poderes dominantes e dominados pelos políticos e pelo capital de Lisboa falavam mais forte e mais alto, abafando os verdadeiros “donos” da Guiné ? Não tinha certezas, nem respostas. Tinha sim, o meu princípio - não matar - Também este, insuflado desde o berço, alimentado na catequese e na escola ( contradição do Sistema). Tive a sorte de ser escolhido ( ou sorteado) para enfermeiro e como tal a minha missão era curar, salvar vidas. Então cada um na sua missão. Ninguém soube deste objectivo. Só a minha mãe que me obrigou a prometer-lhe e o meu “Diário” Não conheci heróis, mas conheci muitos valentes, a quem presto a minha homenagem, que, em nome da Pátria, tudo deram, desde o “congelar” os seus valores e princípios apreendidos na meninice de - não matar – até ao sangue suor e lágrimas e à morte, quantos deles. Morte imerecida, porque estavam na flor da idade e a vida merece ser vivida. Valentes que tremiam à vista e uma seringa de injectar medicamentos, como testemunhei, mas quando caíam debaixo de fogo, se tornavam firmes e decididos e sobretudo solitários com os companheiros em perigo. Creio bem, que foi este, o sentido de corpo, que irmanava; transmontanos, alentejanos, durienses, algarvios, ribatejanos, açoreanos e…etc,etc, e porque não guineenses, (tantos que conheci e recordo com saudade) o factor impeditivo de muito as mais mortes naquele ambiente de clima hostil, cheio de perigos, característicos de um ambiente de guerra, em que uns, os naturais, para além de sentirem a força da razão, motor da sua garra, conheciam os carreiros, trilhos e caminhos como ninguém, procuravam expulsar, os outros, ou seja, nós os coitados que tínhamos sido ali despejados contra a vontade e apenas conhecíamos ( Os Maiorais) a Guiné pela cartografia do exército, antiquada e desactualizada. À grande vantagem do IN, correspondíamos nós com espírito de unidade, capacidade de resistência e coragem sem limites e …a vontade firme de regressar para junto dos nossos. Curvo-me com humildade e respeito a tantos valentes de ambas as partes, os que vi morrer e os que deixaram lá a sua vida, os que sofreram e os que ainda sofrem os efeitos das balas dos estilhaços e das minas e também que sofrem, efeitos colaterais resultantes da guerra. ZÉ Teixeira © Voluntário na tropa, nem para comer ! Numa tarde da minha recruta, depois de nos ser explicado o que são as estrias da arma e para que servem, o alferes instrutor, pede um voluntário para ir junto cabo quarteleiro levantar as estrias de uma G3, para melhor explicar e . . . houve um pato que caiu. Quando regressou com um valente pontapé no traseiro, ainda apanhou uma gargalhada geral dos companheiros do seu grupo. Com isto aprendemos a lição de que, “voluntário na tropa, nem para comer”. Estava a meio da comissão, a aguardar que aparecesse um meio de transporte que me levasse até Bissau, para um mês de férias bem merecido junto dos meus. Dos três enfermeiros da Companhia, um estava em Bissau, regressado da Metrópole à espera de transporte para voltar a Buba. Os outros dois repartiam-se nas saídas para a protecção do grupo de trabalho na construção da nova estrada, nas emboscadas montadas para o mesmo fim, no patrulhamento e na protecção às colunas de reabastecimento de Quebo. A tudo isto juntava-se o trabalho na enfermaria do quartel de assistência aos militares e à população. No dia anterior tinha regressado já noite, do apoio e segurança na estrada. Nesta manhã seguia a coluna para Quebo e à minha Companhia competia-lhe fazer a batida dos flancos e a picada da via, à procura de eventuais minas, até perto de Nhala. À tarde, viria em princípio a Dornier do correio e talvez houvesse uma vaga para me deixar em Bissau. Feitas as contas, ainda daria tempo para eu ir na coluna e regressar. Dado que por uns dias ficaria apenas um “desgraçado” enfermeiro em serviço, prontifiquei-me e oferecei-me voluntariamente para substituir o colega em serviço. Contra a vontade do companheiro, que perante a minha insistência anuiu, apresentei-me ao comandante da força, e, pronto para sair, junto à pista, pelas cinco horas da matina, lembrei-me de que “Voluntário na tropa, nem para comer “! Não hesitei mais, fui ter com o meu amigo Catarino, pedi desculpa, entreguei-lhe a bolsa de primeiros socorros e disse-lhe apenas, vai tu ! é a tua vez. Cerca de meia hora depois a frente da coluna cai numa emboscada., quando detectava um campo de minas. Mal acalmada a situação depois de prolongado tiroteio, inicia-se a desminagem. Um camarada, “mais esperto” vê um tronco de palmeira ao longo da picada e decide ir ver o que se passava lá mais à frente. No topo da palmeira estava uma AP à espera dele. Complicada situação para o enfermeiro que tinha a missão de o socorrer. As minas estavam por perto e o IN também. O ferido esvaía-se em sangue, pois que uma perna tinha desaparecido com o impacte. Felizmente não fora uma “bailarina” muito usada por estas bandas de Buba. Nestes momentos é que se vê e se sente quem são os heróis. Um camarada, junta-se ao enfermeiro e diz-lhe vamos lá os dois buscar o Miguel. Não pensaram no perigo e trouxeram-no para berma, prestaram-lhe os socorros possíveis e recambiaram-no para mim em Buba, de onde seguiu para Bissau e terminou a sua comissão. Mais uma vez fui bafejado pela sorte
OS EFEITOS PÓS - GUERRA Por J.Teixeira
Creio que não há ninguém que tenha vivido um ambiente de guerra, qualquer tipo que seja essa guerra, e muito mais a que vivemos na terra Guiné, que não tenha histórias para contar sobre os efeitos traumáticos que deixaram marcas em cada um de nós e de algum modo condicionou e tantas vezes, e, ainda condiciona aos nossos comportamentos. Vou pôr alguns em comum e assim abrir mais uma porta do nosso blogue. Os rebentamentos de . . . foguetes. Estava a gozar o merecido mês de licença, na Metrópole. Um irmão meu resolveu aproveitar a minha estadia e foi dar o sagrado nó para os lados de Viseu. Carro cheio, atrasados, metidos numa estrada cheia de curvas e toda esburacada, quando ouço “rebentamentos”. Entro em angústia e peço para pararem o carro imediatamente, porque estavam a rebentar bombas perto dali. Gerou-se um burburinho dentro do carro. O noivo ia atrasado, a estrada fraca obrigava a uma velocidade reduzida, só faltava eu com a mania das bombas. E, eles que não ouviam nada por mais silêncio que se fizesse dentro do carro. Um, ou dois quilómetros adiante e como o ruído continuava e agora pareciam-me saídas de morteiro. Gritei: Ou param o carro ou abro a porta e salto !. Que remédio. Encostamos à berma e todos saímos para apreciar os “rebentamentos”. Pois bem, lá longe, bem longe, no meio da serra, via-se o fumo branco de foguetes a rebentarem no ar. Dia do Santo padroeiro em alguma aldeia, com Missa de festa. Os foguetes clamavam pelo povinho para vir conviver. Coisas típicas da nossa gente que infelizmente estão a desaparecer. Com certeza havia copos, um bom cabrito assado e ao fim do dia a saída de todos os santinhos para um passeio em Procissão pelos caminhos da terra. Era tão longe a localidade que os meus familiares apenas viam o fumo e os reflexos luminosos do rebentamento da pólvora. Eu, com o carro em andamento ouvi nitidamente os “rebentamentos” e mais que isso, reagi como estivesse na Guiné. Desfeito o equivoco e acalmado cá o rapaz, seguimos viagem e não houve mais “emboscadas”. Quem não estavam muito satisfeita era a noiva, que após meia hora de atraso, possivelmente pensava que o noivo se tinha arrependido.
ATRIBULADO REGRESSO por J.Teixeira
Quando soubemos a data definitiva da partida de Bissau foi um alegre alvoroço. Cada um pensava como ia conseguir descortinar a família no cais de desembarque, em Lisboa, tal seria a multidão. Os Enfermeiros decidiram fazer um cartaz com uma cruz vermelha e a palavra “ Empada” para se dar a reconhecer às respectivas famílias. Escreveu-se para as famílias a dar a informação e a pedir para estas corresponderam da mesmo modo. Chegados ao cais, após uma noite não dormida no alto Tejo, com Lisboa à vista, há que desfraldar o cartaz e as famílias foram dando sinais, só a minha é que não aparecia. Fiquei sozinho com o cartaz, já enrolado e continuei a percorrer o barco de ponta a ponta com os olhos postos na enorme plateia de gente que acenava, chamava, gritava pelos nomes dos seus queridos, só eu, nada. Lá vislumbrei a minha cunhada e o meu irmão. Saltei de alegria, comecei a dar pancadas na borda do barco com o pau da bandeira e nesse instante entrei num estado de “amnésia”. Desliguei-me desta cena e continuei a procura, por estranho que pareça da minha família, que tinha acabado de localizar. Fui dos últimos a descer do barco, deixei os trastes, junto de um colega que estava já com os seus familiares e fui à procura de quem já tinha localizado, mas não me recordava. Minha mãe e meus irmãos fixaram-se no sítio onde estavam e olhavam para mim lá em cima, estranhavam que não descesse e mais estranharam quando desembarquei, passei por duas vezes a cerca de dois metros deles não os ouvia chamar por e mim e continuava à sua procura. Encontrei a minha namorada, hoje minha esposa, e lá continuamos à procura, até que sinto uma mão a agarrar-me. Era o meu irmão que tinha saltado a barreira de controlo. Claro que este momento de reencontro foi de extrema felicidade, mas notei por parte da minha mãe, alguma frieza que se alastrou a toda a família e que durou por cerca de 8 dias. Argumentavam que eu os tinha localizado do barco. Eu negava. Insistiam que passei junto a eles já no Cais por duas vezes e chamavam por mim, que eu olhava e continuava em frente. Eu negava. Pois é, preocupava-me mais em procurar a namorada que a minha querida mãe. Estava aqui o busílis da questão. O mal estar em surdina era profundo. Evitavam falar comigo. Pensei em sair de casa, apesar de estar sem cheta e desempregado. Um dia, minha irmã, que não tinha ido esperar-me, chegou da escola nocturna e sentou-se a beira da minha cama. Era a única que procurava entender-me. O assunto foi o que nos desunia. Começou por comigo refazer a “história” que eu negava. Dizia ela: tu andavas no barco de um lado para o outro, fazias muitos gestos para as pessoas que estavam no Cais e em determinado momento, localizaste a nossa família. Dizem que entraste em euforia, aos saltos e bateste com um pau na borda do barco. Pegou na régua que trazia com ela e repetiu o gesto na borda da cama: Truz ! Truz ! Truz! Três pancadas que senti na minha cabeça e fez-se luz, na minha memória. Revi num ápice todas as cenas que se passaram e era tudo verdadeiro o que minha mãe afirmava. Saltei da cama fui ter com ela que já dormia a sono solto. Deixo aos prezados leitores a construção do imaginário que se seguiu. Mais “estórias” Passados uns meses do regresso, em plena Baixa do Porto, assisti a um embate de duas viaturas. O estrondo assustou-me e desatei a correr parecia um carteirista logo após ter feito a maroteira de sacar a carteira a algum incauto. Parei no Carmo a cerca de 800 m ofegante e desorientado, o meu corpo tremia todo. Sentei-me numa cadeira no Café “piolho” e pus-me a reflectir sobre o acontecido. Revi a cena e procurei compreender-me. As conclusões foram simples e rápidas: Vieram-me à memória as cenas de sangue que vivi na Guiné, o sangue ainda quente que senti nas minhas mãos, os feridos e mortos que entraram na minha vida como enfermeiro à força. Tive medo de que houvesse feridos e tudo voltasse a acontecer. Ainda não sou capaz de parar junto de um acidente em estrada. Não dá para entender. Passados uns anos sentia-me muito irritável. Tudo me angustiava. Reagia sobretudo com a família de forma menos correcta o que não era consentâneo com a minha maneira de pensar, ser e estar na vida. Procurei um neurologista amigo. Falei largos minutos, mais de uma hora, talvez. A receita deixou-me de boca aberta. São efeitos secundários da guerra que viveste que estão a vir ao de cima e os medicamentos não curam isso. Só o tempo te vai ajudar (e tem vindo a ajudar.) Aconselhou-me a deixar o tabaco, o que não era problema, pois desde que fui para a tropa que tinha saído dos meus hábitos. Deixar de tomar café, o que foi mais difícil. Aguentei oito dias e para comemorar, voltei . Só que felizmente foi ao fim da tarde e com estava em desintoxicação, passei a noite sem dormir e depois… aguentei mais de dez anos. Hoje tomo um por dia da parte de manhã. Aconselhou-me ainda a não abusar do álcool, o que também não era problema, pelo que ainda aqui estou. Em 1999 tive de fazer um exame ao aparelho auditivo, devido a uns ruídos estranhos que sentia e por cá ficaram. Trata-se de artero-esclerose dos vasos capilares auditivos, que origina um ruído do sangue ao forçar a sua passagem nos vasos. Nada de grave, só que levarei esses ruídos para a cova um dia. Incomoda, mas não dói, nem afecta a saúde. O estranho é a descoberta que o médico fez. Tenho uma quebra de audição nos sons agudos de cerca de 20%. Pergunta-me o médico: Andou na guerra ? Sim estive na Guiné entre 1968 a 1970. Mas andou mesmo nas zonas de combate ? Sim sofri muitos ataques, acompanhei ataques, sofri emboscadas . . . Então está explicado a sua quebra de audição nos agudos. Chama-se síndrome de guerra e está dentro dos limites previstos, não se preocupe porque não vai evoluir, disse o médico. Chega de “estórias” estranhas à guerra, mas que são reflexos da guerra que vivi. Venham mais cinco, para contar mais “estórias” destas que as há por aí.
UMA VIDA QUE DEIXEI FUGIR
Saímos de Buba pela seis da manhã com destino a Aldeia Formosa, próximo poiso da C.Caç.2381 durante alguns meses. Como companheiros tínhamos a C.Caç.1792 - Lenços Azuis, que nos veio buscar a Buba.
Na coluna, seguiam cerca de três dezenas de viaturas carregadas de mantimentos para as tropas estacionadas em Aldeia Formosa, Mampatá, Chamarra e Gandembel, incluindo os três obuses de 14mm que iam reforçar a defesa de Aldeia Formosa e áreas limítrofes
A estrada (picada ) está num estado lastimoso; buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros, foram percorridos em oito horas e meia.
A coluna seguia lentamente, cautelosamente. Os “piras” concentrados. As mãos de alguns, integrados no grupo de “picadores”, agarravam febrilmente as varas de ferro com que picavam a terra à procura de algo mais duro que indiciasse uma caixa de madeira ou chapa metálica, onde poderia estar a perigosa mina assassina, que muitos de nós nunca tínhamos visto nem imaginávamos como seriam. Ouvidos atentos aos sinais toc, toc que se repercutiam na terra e ao mais pequeno som diferente, logo ordem de paragem. Ninguém mais se mexia. Uma insistência, o rebuscar da terra envolvente, numa ansiedade indescritível.
Por vezes a descoberta de uma raiz ou uma pedra, provocava um respirar aliviado e a marcha continuava. O olhar atento que se desdobra em todas as direcções; o caminho que se vai trilhar em busca de sinais de terra remexida de fresco; a mata cerrada que nos cerca, onde o inimigo pode estar, aguardando o melhor momento para atacar e matar. Roubar a vida a quem ama a vida, obrigando a uma partida prematura, deixando o futuro cheio de saudades de quem parte e quem assim parte leva imensas saudades do futuro.
O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo, a conselho de um soldado da milícia que estava a meu lado e me arrastou para o meio de uns arbustos ali na mata. Ele foi a “mão de Deus” que me protegeu das picadas das abelhas. Não sei se o voltei a ver alguma vez, mas estou-lhe muito agradecido, pela lição que me deu, a qual não só me salvou de umas dezenas / centenas de picadelas desta vez, como da outra em que eu voltei a cair em situação idêntica.
Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada um tanto hilariante de toda a gente que protegia a coluna de viaturas naquele sector. Se o IN. tivesse atacado nesse momento seria um desastre total, tal foi a desorganização gerada
Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo...
Que culpa teria aquele jovem que me morreu nas minhas mãos, sem eu lhe poder valer, que os homens não se amassem ? Que os políticos não se entendessem ?
A sua vontade de fugir à morte impressionou-me e ainda hoje parece que estou a ouvir os seus últimos e já ténues gritos de vida.
Estava a comunicar via rádio com Buba a informar que se tinha passado uma zona considerada perigosa, o entroncamento da estada de Aldeia Formosa com a estrada que seguia para Empada em Sinchã Cherno, sem qualquer dano, quando a viatura em que seguia accionou uma mina anti-carro.
Era a quinta viatura, a mais frágil das que tinham pisado a estrada. Aparentemente estava livre de perigo das minas, dado que as anteriores viaturas eram extremamente pesadas, quer pela carga que traziam, quer pelos sacos de areia que substituam os bancos.
Logo atrás vinha o primeiro Obuz de 14, um dos três, que se destinava reforçar a defesa de Aldeia Formosa e áreas limítrofes
Ouso pensar que o condutor talvez se tivesse desviado um pouco do rodado feito pelas viaturas antecedentes, sem pôr de parte a hipótese de a mina estar programada, para o carro do rádio ou eventualmente para o Obuz.
Dos quatro camaradas atingidos foi o que aparentemente menos sofreu. Não apresentava ferimentos externos. Do estado de choque em que caiu, rapidamente foi recuperado.
Pouco tempo depois começou a sentir falta de forças e a cor da pele que reflecte a vida começou a fugir da sua face.
Sede. Muita sede e o corpo a arrefecer. A angústia e o desespero começa a tomar conta dele e de nós, os enfermeiros, que nos apercebemos da situação, sem lhe poder valer. Com a queda tinha rebentado vasos sanguíneos internos, que implicava internamento urgente para ser operado a fim de se localizar a origem e se poder estancar a hemorragia. As forças fugiam a cada momento. Passado algum tempo gritava desesperado: já não vejo! Já não vejo ! vou morrer. Eu não quero morrer, salvem-me !
Impunha-se uma evacuação urgente, mas como ?
Os dois aviões que nos tinham acompanhado até aquele local e batido a zona, tinham-se ido embora. As comunicações via rádio foram destruídas pela mina.
Que raiva, meus Deus !
De nada valeu a água que esgotamos, o soro que lhe demos, o carinho e. . . talvez as orações de alguns.
A morte veio matar o futuro daquele jovem. A vida fugiu-lhe rodeada de amigos que nada puderam fazer.
O destino marcou no tempo, aquela hora, aquela viatura, aquela vida cheia de vida, que deixou de ser vida. Partiu para sempre cheia de saudade de um tempo a que tinha direito a viver e nem sequer teve tempo para conhecer, porque o seu futuro deixou de existir.
A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h.) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista.
Isto foi a guerra... a dura guerra que vivi !
Zé Teixeira
O medo do terrífico telegrama
Naquele dia 8 de Fevereiro de 1970, uma mãe esquecida do quadragésimo oitavo aniversário, preparava o almoço para os três filhos. Um quarto estava ausente na Guiné. Este, tinha feito 23 anos dois dias antes.
Era comum juntar-se a família no dia oito e cantarem-se os parabéns em duplicado.
Apenas se mudavam as velas no bolo que aquela mãe, analfabeta, cozinhava com todo o carinho.
Seriam umas onze da manhã, quando o carteiro bateu à porta. Trazia um pequeno papel rectangular dobrado em quatro e tinha como destinatário o nome daquela mulher.
D. Rita assine aqui em como recebeu.
Mas… eu não sei assinar retorqui aquela mãe, com o coração já em sobressalto.
Uma vizinha prontificou-se a assinar a rogo. O carteiro foi-se embora e aquela mãe tremia de medo, com a mensagem que supunha vir dentro do malfadado papel.
Ai que o meu filho morreu. Foi o seu primeiro pensamento.
Largou os chinelos. Com o papel junto ao coração desata a correr descalça, rua acima até ao emprego da filha, a cerca de dois quilómetros.
Chega ao destino esbaforida e sem forças, as lágrimas correm-lhe pela face.
Pede para lhe chamarem a filha. Queria ser ela a primeira a saber da sorte do seu filho.
Ao ver a filha ao longe grita: Ai Lai que o teu irmão morreu!
Morreu nada, minha mãe.
Morreu, morreu. Chegou agora o telegrama.
A filha abre o terrífico papel.
“ PARABÉNS PELO SEU ANIVERSÁRIO
Assina. Armanda”
Oh minha mãe então você não se lembra que faz hoje anos?!
É um telegrama da Armanda (a namorada do filho) a dar-lhe os parabéns.
É isso que diz aí?
É minha mãe. É o que está aqui escrito.
…GRAÇAS A DEUS.
Aquela mãe, era a minha mãe.
E eu dou Graças a Deus por poder contar, hoje, esta pequena, mas verdadeira história.
Zé Teixeira