A GUINÉ QUE EU RE-VI 35 ANOS DEPOIS
A Guiné que eu Vivi ! 1968/70 A Guiné que eu (re)vi 2005.
Arame farpado a rodear as Tabancas (Aldeias).
Primeira fiada, segunda fiada. Garrafas vazias penduradas duas a duas para com o seu tilitar servir de aviso aos sentinelas nocturnas.
Área capinada, armadilhas de fogo . . .. Recolhas ao interior da Tabanca, ao pôr do Sol, silêncios …
As festas naturais da comunidade, momentos de alegria, convivências, partilha de amizades, como festas de nascimentos, casamentos, aniversários, convívios, tudo abafado no silêncio aterrador do medo.
Os ataques às Tabancas, as correrias para os abrigos, o dormir com as crianças amarradas às costas para poder salvá-las ao mais pequeno sinal de perigo, os feridos, os mortos, as crianças a chorar . . .
As colunas sem fim, debaixo de sol abrasador, as emboscadas, as balas a assobiar por cima das nossas cabeças, as granadas com o característico som da saída da boca do canhão, que originava o grito: Aí estão eles ! . . . e vida parava . . .
Saídas temerárias à Bolhanha ( áreas de cultivo) para a labuta do ganha pão, nos arrozais, mancarrais, milheirais ou pesca, com medo de encontros desagradáveis. Os nacionalistas do PAIGC apelidados de “Bandido” para os nativos e “Turras” para a tropa branca, podiam surpreender com o “ ágára ! ágára! é nosso ! (Agarra ! Agarra !). Precisavam de alimentar as suas fileiras com combatentes, com transportadores e mão de obra para a produção de riqueza e sobretudo alimentos ( trabalho nas bolanhas controladas). De nada servia dizer que “tem família, tem minino prá cuidar”.
Assim se vivia na Guiné que conheci.
O risco tornava-se maior se o encontro se dava com os “tuga” ( tropa portuguesa) se esta os confundisse com bandido. Possivelmente de nada lhe serviria dizer “amigo di tropa” ou nem tempo teria para o fazer. . .
Recordo os dois jovens irmãos cuja captura testemunhei em Ingoré, suponho que para lá da fronteira, dentro do Senegal, numa das patrulhas que a minha Companhia fez. Recusaram-se ou não sabiam falar Português ou Crioulo, apenas francês que julgo, ninguém do comando sabia o suficiente para os entender. O mais velho foi metido numa masmorra com a sua altura, dois metros de comprido por um de largo ( vergonha nossa). Tinha apenas uma janela, com chapa em lugar de vidros, por onde entrou e depois se fechou. Assim ficou no escuro alguns dias à espera de ser enviado para Bissau como “turra”. Apenas via a luz do sol, quando lhe levavam comida, duas vezes ao dia. Para as necessidades fisiológicas, um balde, que lhe possibilitava uns momentos de luz e ar ao ir despejá-lo à retrete, dia sim, dia não. Até que, cansado de tanto sofrer tentou a sua sorte. Quando lhe foram levar comida, atirou-lhes com o conteúdo do balde à cara. Era a última esperança. Liberdade ou morte. Esta vida não. . . . . . Foi barbaramente assassinado por um cabo da Companhia dos "velhinhos" com um tiro na boca, dentro da masmorra, uns momentos depois. Regressou a Lisboa, passado um mês com a sua Companhia. Não houve processo, inquérito.
Tudo tão natural. Aconteceu . . . Eu estava lá a cinco metros.
Suponho que no relatório oficial da sua morte, se o houve, devia constar “ morto ao tentar fugir”. O irmão, mais novo ( 17 anos) não cabia na masmorra. Ficou junto ao refeitório amarrado e guardado por dois soldados, até ir habitar o lugar que seu irmão deixou vago. Tratei-o de um furúnculo que tinha no peito.
Tive oportunidade de conversar algumas vezes com ele em francês. Criei alguma relação de amizade e cumplicidade.
Continuei a visitá-lo a pretexto do tratamento. Nas conversas que tivemos confrontei-me com um jovem que tinha bases académicas avançadas para um jovem aldeão do interior da Guiné. As conversas que tivemos sobre vários temas, no meu parco francês confundiram-me. Comecei por ver nele um possível IN. que merecia ser tratado como pessoa, pois estava doente. Com o desenrolar dos contactos, comecei a gostar de conversar com ele. Foi como que uma realidade nova para os meus dois meses de Guiné, alguém que se afirma cidadão do Senegal, que rejeita a guerra e não sabe porque foi preso, pois ia para a sua bolanha no Senegal trabalhar com o irmão. Mas alguém que demonstra conhecimentos de geografia e história. Isto tudo me leva hoje a acreditar na sua versão de estudante em Dakar – Senegal, a passar férias na aldeia.
Foi ocupar a masmorra que o irmão deixara livre depois de ser assassinado. Acompanhei-o até à prisão. Despedimo-nos com um caloroso aperto de mão, como sempre o fazíamos quando a pretexto de “dar mézinho ao prisioneiro” o ia visitar. Uma lágrima teimosa percorreu a minha face, o coração comprimui-se. Não tive a coragem de lhe dizer o que aconteceu ao irmão.
No dia seguinte a masmorra estava aberta. Julgo que o levaram para Bissau para ser interrogado pela Pide. Perdoem-me os camaradas que estiveram na Guiné, este relembrar de situações dolorosas que poderão incomodar.
São marcas que ficaram e não se podem esconder, para que a verdadeira história se faça.
Durante estes anos passados era esta a imagem que eu retinha da Guiné.
Devorava todas as notícias que foram marcando aquela terra vermelha. Mas o sonho mantinha-se. Precisava de voltar e apreciar as mudanças.
Família e amigos apelidavam-me de “doido”. Rompi barreiras, aceitei o desafio de um amigo e voltei. Atravessei Espanha, Marrocos, Mauritania e Senegal para entrar na Guiné por Pirada (1) e ser recebido como um amigo que volta a sua casa.
De facto senti-me em Portugal. É verdade que hoje continua a sonhar acordado e a dormir, com a Guiné, mas uma visão muito mais sadia.
Pensava que uma ida aos locais onde vivi, me curaria da “sodade” . . a Guiné sair-me-ia do pensamento. Se antes, sentia necessidade de ir buscar “Paz” para o meu espírito, agora sinto uma vontade ainda maior de voltar, voltar sempre.
Hoje, continuo a sonhar, mas com a outra Guiné. A de 2005/2008 com o mesmo povo, franco, aberto, comunicativo e sobretudo alegre e acolhedor.
Os tempos da guerra passaram, e, se deixaram marcas negativas, estas foram abafadas pelo que de bom lhe levamos. Formas de estar, de pensar e agir diferentes. Apesar de levarmos a guerra e o sofrimento, também levamos uma nobreza de alma. A maior parte dos portugueses que forma chamados à Guiné, eram oriundos do interior de Portugal.
Gente humilde e honrada. Gente que soube separar as águas e não ver nos Guineenses um inimigo a abater, mas pessoas que apenas tinham outra cor, outras culturas e hábitos, outra forma de vestir.
A simbiose fez-se naturalmente, sem dificuldades e a imagem que ficou, mantem-se.
Somos queridos e bem vindos. – Tu Português de Portugal, eu Português de Guiné - ouvi dizer algures na nova Guiné que visitei em 2005. Ou, - Branco ê na volta ! Branco ê na volta mesmo – como me dizia a velhinha mulher do falecido Sambel, Homem Grande de Contabane, (2)quando comovida me abraçava.
A visão panorâmica das aldeias locais ( Tabancas) mudou completamente e também mudou, felizmente, na minha mente.
Vi pistas de aviação foram transformadas em locais de habitação e de produção de Caju, vi casernas transformadas em escolas, por todas as tabancas por onde passei. Os espaços que mantínhamos capinados à voltas das tabancas por questões de segurança, são zonas de habitação e produção de cajueiros (1).
As Tabancas cresceram, romperam as barreiras de arame farpado, aproximaram-se umas das outras.
Não há medos nem silêncios, há vida. A estrada de Quebo a Mampatá Forea, outrora deserta e minada, quantas vezes, onde havia duas Tabancas, Afia e Bacardado, esta última abandonada no meu tempo depois de incendiada pelo IN, é hoje uma “passerelle” continua de pessoas em movimento, que se alonga por Uane, Sare Donhã e Samba Sábali.
A estrada de Saltinho, Contabane a Quebo, fechada, após a destruição de Contabane,(2) é outro corredor de interligação de pessoas.
Buba voltou a ter a vida que nos anais da história retratam como cidade comercial ( transformada no tempo da guerra a uma pequena povoação com um forte contingente militar – duas Companhias da tropa macaca, uma de Comandos ou Páras e uma de Fuzileiros). Banhada pelo Rio Grande Buba, braço de mar. Porto de ligação com a zona de Tombali. Centro comercial pela sua posição estratégica, cresceu imenso, gerando uma grande avenida que ultrapassa o fim da pista de aviação, actualmente transformada em zona habitacional e de comércio.
A picada para Fulacunda foi activada, dando acesso `Tabanca de Sare Tuto a cerca de 5 Km de Buba, conhecida por Tabanca Lisboa. Outrora base e centro de treino IN. Daí partiam para nos “incomodar” na estrada em construção, nas colunas para Quebo e nas Tabancas onde estacionávamos ( Buba, Nhala, Samba Sábali, etc.
Insólito é que o Chefe de Tabanca actual é um antigo paraquedista das F.A.P. talvez mais português que qualquer um de nós, até no português que fala sem sotaque local. Os seus habitantes são ainda, na sua maioria antigos IN.
O nosso amigo que se orgulha de ter servido Portugal tirou o Curso em Tancos e seguiu para a sua terra onde durante anos serviu Portugal nos Páras. No fim da guerra viveu clandestinamente durante dois anos e depois voltou . . . para a mulher que tinha do outro lado da barreira e vivia nesta linda Tabanca de Sare Tuto (ou Lisboa), onde ainda hoje, quase só se fala Crioulo ou francês. As suas bases culturais depressa o guindaram para Chefe de Tabanca. Tem em funcionamento uma escola de Português e está a criar outra no outro extremo da Tabanca. Conhecedor da mata como ninguém, é um excelente pisteiro, procurado pelos caçadores brancos que vão à Guiné e se instalam no Saltinho.
Aqui neste cantinho escondido da Guiné, tive o meu reencontro oficial com o IN. Quatro homens e mulheres, manga delas observavam-nos à distância de 2/3 metros. Perguntei quem eram e tive como resposta “Turras”. Dirigi-me a eles “ A bó bandido qui taka Buba, tempo di guera ?. Começaram se a rir e um deles retorqui: A bó turra branco qui firma na Buba ? djobe. Manga di tempo qui guera na kaba. Parte mantanhas. Demos um abraço e eu senti-me um homem feliz.
Contabane é uma tabanca que fica entre Quebo e Saltinho (Sinchã Shambel). O Régulo Shambel, teve a visita do IN na noite de S.João de 1968. A Tabanca foi incendiada e destruída, o Pelotão da C.Caç.2382 teve de retirar com a roupa que trazia no corpo e a população refugiou-se em Quebo. Actualmente a sua mulher vive em Sinchã Sambel do outro lado da ponte do Saltinho, cujo chefe é seu filho. Este era milícia em Mampatá Forea e casou com a Àdada filha do Alferes de milícia Aliu Baldé, régulo de Mampatá no meu tempo. Tive o prazer de conviver de novo com esta mulher que era uma das mais belas bajudas que conheci, e continua a sê-lo a par da sua amiga e futura cunhada Famara Baldé (minha “lavandera”) Zé Teixeira ©
VOLTAR À GUINÉ É RE-VIVER O PASSADO NO PRESENTE
Tive recentemente o previlégio de após 35 anos de separação, voltar à Guiné e encontrar, velhos amigos, companheiros de aventuras de guerra e sofrimento. Reconhecemo-nos. Chamaram os outros amigos comuns de outrora, apresentaram-me as mulheres, os filhos, os netos, os amigos ( alguns combatentes da outra banda) e confraternizamos.
Recordamos tantos momentos juntos. Recordamos pessoas que já partiram. Perguntaram por companheiros(ainda sabiam os nomes) que nunca mais viram.
As lágrimas saltaram teimosamente enquanto o coração rejubilava por um momento tão grandioso. Para ilustrar o que afirmo vou tentar descrever o diálogo com a Dadá, que localizei em Sinchã Sambel ( Saltinho) Ouço uma voz atrás de mim. - Tissera, tu lembra Aliu de Mampatá ? Olho e reparo numa mulher linda dos seus sessenta, bem vestida de sorriso rasgado. Não a reconheci como sendo a lindíssima Dadá, que conheci em Mampatá em1968. - Sim lembro: Aliu Baldé – Chefe de Tabanca e Alferes de Mílicia, Sei que já morreu há muito tempo (1) - Tu lembra Hamadú, milícia de Mampatá, filho do Régulo Sambel de Contabane ? - Conheci vários Hamadú. - Minha marido e chefe de Tabanca de Sinchã Sambel. -Tu Lembra da Filha de Aliu, a Dadá ?
- És tu ? - Sim. Eu mesmo.
(Colamo-nos num longo e fraternal abraço, deixamos que o coração falasse) -"Nha fidja, nha neto, tudo gente de mim" !
A alegria e o orgulho em me apresentar a família. De seguida foi vestir o mais bonito vestido, “pra tira foto cum Tissera”.
Correu a chamar a sogra ainda viva, mulher do Régulo Sambel de Contabane.
Esta velhinha de cabelos brancos abraçou-se a mim a soluçar e só sabia dizer “ Branco e na volta ! branco e na volta ! Por mais que lhe dissesse que agora só lá íamos para ver amigos e matar saudades, ela insistia: Branco e na volta !
O tempo livre que tive, passei-o na Tabanca a conviver. Sentia-me em casa. Toda a gente me chamava para “papea um piquinino”.
Alguns antigos milícias em Mampatá e em Aldeia Formosa, agora, a viver nesta Tabanca, vieram ter comigo, apresentavam-me a família. Falavam-me de outros cujos rostos, já se tinham esvanecido da minha memória. Relembravam aventuras comuns. Queriam ficar no postal (fotografia) para eu trazer, de recordação.
A marcha do tempo não perdoa, bem pelo contrário, desta vez, contrariamente aos anos de guerra, foi rápida de mais.
Tive de regressar. A partida foi dolorosa. Quando me fui despedir, soube que no dia seguinte (o da minha partida) vinham pessoas de Mampatá para estar comigo.
Tive pena e prometi a mim mesmo lá voltar. Regressei à Guiné para recordar. Rever amigos e espantar fantasmas.
À partida pensava que arrumava a Guiné do meu pensamento. Agora, a Guiné está-me no coração. É a minha segunda pátria, tal como ouvi por lá: Tu Português de Portugal. Eu Português de Guiné.
Zé Teixeira ©
COMBATENTES AFRICANOS
Aos nossos queridos “nharos”
– Tropa africana que connosco deram o seu sangue suor e lágrimas,por Portugal ( com toda a carga emotiva, de carinho e afecto que a palavra “nharo” possa conter.
O programa aparecido na TV, teve pelo menos o condão de nos pôr a reflectir, a nós que durante cerca de dois anos convivemos diariamente com a tropa africana fiel a Portugal e não ao regime, como alguns tentam deixar passar.
O conceito de mãe pátria, metrópole, Lisboa, estava arreigada naquela gente, não pelos políticos, mas pelos portugueses brancos que por lá foram passando, muitos dos quais para cumprir penas de índole criminal e quantas vezes por estarem em desacordo com os políticos e as politicas exercidas em Portugal.
Era um conceito forte, de esperança e de orgulho.
Foi com eles que eu aprendi quanto se deve respeitar a bandeira do meu País. Com que orgulho eles a saudavam ( e toda a população) no hastear e arrear diário. Gesto que ainda hoje se repete. Em 2005 em Bissau pude testemunhar, o toque de hastear no quartel da Amura e a reacção de toda a população na rua exterior, até onde era possível ouvir o toque.
Era este conceito de filhos de Portugal, aliado naturalmente à propaganda da época e aos benefícios financeiros que os faziam alinhar ao nosso lado com a sua experiência e conhecimento de logística local, dos carreiros das tabancas inimigas, dos perigos desconhecidos para um europeu ingénuo, para quem tudo era estranho, desde o clima ao modo de estar em sociedade, à floresta com os seus segredos e perigos, às técnicas de guerrilha usadas pelo adversário.
- Quem de nós “periquitos” não sentiu ao chegar, uma mão amiga, um sorriso e um alerta para um eventual perigo ?
- Quem nos orientava na Tabanca, na busca de uma “lavandera” bonita e jeitosa ?
- Quem nos avisava dos perigos da floresta ? Abelhas, formigas, cobras. (Aos bloguistas que se deram ao trabalho de lerem o “meu diário” recordo a cena do ataque de abelhas e a forma como um milícia cujo rosto não fixei que me agarrou por um braço, me escondeu atrás de uma árvore e me aconselhou a ficar rigidamente quieto até elas, as abelhas, se irem embora. Foi assim que aprendi a não ter medo de abelhas e tanto jeito me fez no segundo ataque que sofri mais tarde.)
- Quem nos indicava à chegada o melhor sítio para tomar banho, no rio para tomar banho sem correr perigo ?
- Quem nos arranjava os frangos e os cabritos para as “tainas” para esquecer ás máguas
- Quem se prontificava a ajudar o colega do morteiro, o enfermeiro ( Bons amigos que tive e recordo com saudade), no transporte do equipamento, etc ?
- Quem ainda hoje apesar de tão desprezados pela “mãe pátria” como costumavam dizer, nos recebem com um carinho e afecto, que só quem lá foi consegue entender e apreciar. Vi e senti lágrimas, recebi abraços longos e quentes, passados 35 anos de separação.
- Quem servia o meu País e desprezava o seu país, deixando mulheres e filhos da outra banda ( Kebá de Empada, meu querido amigo, recordo as conversas que tive contigo, sobre as tuas duas mulheres e os teus filhos que optaram pelo outro lado, quanto tu sofrias quando eras atacado ! Porque te recusavas a ir comigo para o mato !
- Quem, debaixo de fogo, avançava de peito aberto para o Inimigo, ( eu testemunhei) protegendo-nos (quantos de nós tão acagaçados, que não cabia um feijão no buraquinho) convencidos que era esse o caminho certo para o seu País ?
- Quem vergonhosamente os abandonou, deixando que tantos fossem assassinados pelos seus conterrâneos, só porque estavam do lado errado, quando politicamente correcto Portugal admitiu que não tinha saída, a não ser dar a oportunidade a um povo de construir e seguir o seu próprio destino ?
- Quem a partir desse momento os deixou órfãos de Pátria, obrigando-os a irem procurar a “sua pátria” que até então lhe garantiam não existir, sem qualquer preocupação de lhe dar o prémio merecido por tudo quanto fizeram em nome e para Portugal ?
- Quem lhe traiu todas as promessas de uma Guiné melhor, com Portugal… Sinto vergonha.
Estão-me na memória, Sambá`s, Adulai`s, Usemane`s, Hamadu`s, Aliu`s, Braima`s Mamadu`s, tantos outros, que conheci e com quem convivi sadiamente, que me acompanharam em tantos encontros com o adversário e que merecem ser considerados filhos de Portugal, pelo que fizeram, pelo que sentiam e ainda sentem, pela alegria que expressam quando nos vem chegar.
Quantos deles assassinados por incúria de Portugal, quantos andaram anos fugidos no mato, deixando a família nas mãos dos adversários, quantos ainda não reconstruíram as suas vidas, quantos sofrem o “stress de guerra” quantos morreram à fome, quantos passam fome, por falta de trabalho.
Não sabiam fazer mais nada a não ser guerra. Telefonou-me há dias o Quintino Procel de Empada. Esse conseguiu fazer no meu tempo a 4ª classe e seguiu a carreira de enfermeiro, sendo hoje o enfermeiro chefe em Canjadude. Quando em 2005 passei por Empada procurei-o. Alguém o informou da minha presença e o seu telefonema chegou um ano depois “ Tissera tu vai na Guiné e não fala comigo ? Eu na tem casa em Canjadude. Bó na vem e firma lá. Eu fico triste, manga dele, por não ver Tissera. Foram estas palavras que guardei no coração passados 35 anos. Creio que ainda há algum tempo para Portugal olhar para esta gente. Não pode desperdiçar esta oportunidade.
Creio que nós, antigos combatentes ainda podemos fazer algo por eles. No mínimo ir visitá-los, (os que puderem) testemunhar-lhes a nossa amizade, tanto quanto eles nos deram a deles. Permitir que sintam e vivam essa alegria de não sentirem que foram esquecidos, por aqueles que como eles deram sangue suor e lágrimas, por uma Pátria que não sendo actualmente a deles se deve sentir orgulhosa de os ter tido como filhos, (embora de 2ª)
Zé Teixeira
SOB A PROTECÇÃO DO POILÃO
São dez da noite em Mampatá. Tempo de luar que transforma a noite em dia. Uma brisa suave faz-me lembrar o meu Porto, nos meses quentes do verão. Ao longe ouvem-se o troar dos canhões que há momentos massacravam Gandembel. Agora parece ser em Guileje ou Gadamael.
Aqui ao lado uma criança chora inconsoladamente, é a filha da Fatma ( fátinha) e do Siriano, o comerciante cá do sítio.
Boa noite fermero, saúda-me o velho Samba, o sargento da milícia, incansável todas as noites a fazer a ronda de controlo do silêncio junto da população.
“na pinda” (está tudo Bem ?) respondo-lhe na língua dele. Jame tum (Obrigado).
Tudo está bom, tabanca está contente, mas tem perigo, bandido stá na mato, lá e aponta para os lados de Cumbidjá / Colibuia.
Os ataque que temos sofrido têm sido montados desse lado da tabanca.
Quando vamos paras Buba pela estrada de Sinchã Cherne, cruzamos esses caminhos e há sempre encontros desagradáveis.
Os canhões continuam ao longe, agora também dos lados de Buba, talvez Nhala e Saltinho.
Mais ao longe de lugares indefinidos ou desconhecidos para mim, parecem foguetes.
Fazem-me voltar aos meus tempos de criança na aldeia, no Domingo de Páscoa, quando ia contigo ao cair da noite ver a chegada do compasso à Igreja, mais ou menos à mesma hora em todas as freguesias, com um Cristo cansado de tanta beijoquice, depois de um dia a correr de porta a porta, em que os foguetes como que gritavam bem alto para que se ouvissem ao longe “Cristo ressurrécit alelluia”.
Os meus camaradas dormem uns, outros estão de sentinela e eu estou para aqui escrevendo-te. Pergunto-me, porque aceitei pacificamente, como o cordeiro a caminho do matadouro, ir para a tropa, vir para a Guiné, para esta terra vermelha e inóspita que me enjeita. Vim de arma na mão para matar ou morrer.
Matar os inimigos da mãe pátria. Eu? Porquê eu !
O Pires teve medo e fugiu para França a salto. Despediu-se de mim numa noite fria no Café Bissau no Porto. Encarregou-me de avisar a família, mas só três dias depois, o tempo suficiente para passar a fronteira.
O Custódio, disse não à violência, furou barreiras e está em Lille a estudar.
O Nascimento (1) foi apanhado com o companheiro de aventura pela guardia espanhola e entregue à GNR mas ao menos tentaram . . . Eu, nem sequer tentei. Deixei-me conduzir por fantasmas. Palavras que me meteram na cabeça, desde os bancos da escola em Sub-Ribas.
Ainda te lembras, quando me levaste lá pela mão, quando tinha sete anos ? Aquela escola velha, destelhada, com paredes esburacadas ! Talvez mais cedo ainda.
A catequista ficou contente quando no primeiro dia de catequese lhe disse de cor, o Pai Nosso, graças à avozinha, que tanta paciência teve em mo ensinar e que nos últimos anos de vida ia duas vezes à missinha, uma por ela e outra por este malandro que se podia esquecer ! Como pagamento, a catequista, ensinou-me que Portugal era um país de heróis e de santos, que fomos para África para salvar os pretinhos, coitadinhos e que tínhamos de rezar muito a Nossa Senhora de Fátima para salvar Portugal das garras do comunismo que vinha da Rússia.
O que era o comunismo ?
Quem era a Rússia ?.
Mais tarde no grupo de jovens alguém disse que Cristo foi o primeiro comunista. Que confusão foi na minha cabeça !
Em 1961 os pretinhos coitadinhos passaram a mauzões. Estriparam, degolaram e mataram os brancos no norte de Angola.
Quem lhes ensinou essas coisas ? Os Portugueses não foram. A esses tiravam-lhe, eles, o sarampo.
Ah ! Foram os comunistas. Então os comunistas foram para África. Será que a catequista tinha razão ?
Para Angola e em força, clamava Salazar. As suas palavras ecoaram pelo País fora, levadas pelos “patriotas” do império.
Para Moçambique ! para a Guiné ! . . . e cá vim eu cair uns anos depois.
Que faço aqui ?
Quem esta gente que tão bem me acolheu aqui em Mampatá ?
Na partida em Abrantes um “patriota” de galões dourados disse no seu discurso de despedida “ todos vós tendes um bocadinho de terra na Guiné, é nosso dever de portugueses defendê-la até à última gotas de sangue “
Alguém respondeu baixinho “ Eu dispenso o meu bocadinho”. Eu pensei, “ podia o meu coronel ficar com o meu bocadinho e ir na minha vez “, mas o que é que ele percebe de enfermagem ?
Um enfermeiro, mesmo às três pancadas, pode ser útil, e, aqui estou.
Ao longe os canhões continuam a troar, não há descanso de ambas as partes e eu aqui estou nesta terra linda de Mampatá, não fora a guerra, como seria bom estar aqui. Muita gente jovem, mulheres bonitas.
Tu sabias que as pretas são muito bonitas ?
Gente hospitaleira ( os tais pretinhos, coitadinhos) que acolhe com um sorriso, que quer que beije as suas crianças, que me ofereceu uma bebé, duas para minhas mulheres a quem tenho de ir parte mantanhas (beijar) todos os dias. Todos os dias uma mãe, (2) a quem curei a menina de paludismo crónico vem ter comigo, com a bebé ao colo e uma caneca de água fresquinha que vai buscar à mesma fonte de que se abastece a aldeia inimiga existente a poucos quilómetros daqui (dizem).
Há tempos cuidei de um dos poucos velhos que há por aqui. Como forma de pagamento o filho, ofereceu-me a sua própria mulher.
Povo que têm a sua cultura de padrões muito diferentes da ocidental, de que tanto nos orgulhamos, mas cheia de valores, que talvez não tenhamos.
Às vezes quando parto para o mato ou para as colunas aparecem, na berma da picada, a dizer-nos adeus, com um sorriso aberto.
Também surgem olhares carrancudos. Sou tentado a pensar se não vou reencontrar esses mesmos olhares, agora de ódio, lá mais à frente, no fogo cruzado de uma emboscada assassina.
Não, não podem ser estes os olhares, que se escondem na mata.
Como eu gostava de lhes dizer a esses que nunca vi, que não estou aqui para matar, mas para viver.
Deixem-me ir embora que eu deixo-vos o meu bocadinho de terra que dizem que é meu.
Pensava que me ia sentir um estanho, mal amado, rejeitado. Fui acolhido com natural carinho aqui em Mampatá. Não fiques preocupada. Criei amigos. Estou bem. Sinto-me numa ilha rodeada de guerra por todos os lados.
De vez em quando a maré vem até aqui, mas tem sido a brincar. O pior será quando sair daqui para outra zona, ou eles lembrarem-se de nós.
Duas pequenas coisas para terminar:
1º - Não entendo esta guerra em que fui metido. Não tem sentido, irmãos contra irmãos, pais contra filhos, filhos contra pais. A família da Fatma Baldé viviam em Colibuia. Tiveram de fugir para Mampatá, ou teriam de passar-se para os terroristas, deixando lá tudo, casa, terreno, antepassados e sobretudo o sonho. É isso, matam-se em nome de um sonho – a Independência. Primos, tios, cunhados, estão da outra banda. São os nosso inimigos, que se escondem na mata, ou nos atacam no cair da noite
2º- Impressiona-me a forma respeitosa como respeitam a bandeira de Portugal. Ao toque do corneteiro do quartel indicativo do issar ou do desfraldar da bandeira no quartel, toda a Tabanca pára e fica em sentido. Que Pátria esta que tem raízes tão profundas aqui na Guiné !
(1)Ironia do destino, foi parar à Guiné e viveu o drama da retirada de Gadamael Porto, tendo-se safado porque fugiu para o mato e foi salvo por um Barco, suponho que foi a Orion. Gostaria de voltar a encontrá-lo, mas perdi-lhe o rasto.
(2)Na minha partida de Mampatá, para Buba, a Ansaro veio trazer-me a Maimuna a sua bebé e “minha mulher”para levar comigo.
Acto simbólico, creio eu, mas que me comoveu profundamente, pois ela sabia que tal não era possível. Por esta e outras razões Mampatá esta gravado no meu coração.
A minha estadia, lá foram umas pequenas férias no meio da guerra - uma pequena ilha como digo no texto rodeada de guerra por todos os lados – Gandembel, Gadamael Porto, Guileje, Cacine, Mejo, Buba, Saltinho, etc.
Estava tão calmo que quando deixei esta tabanca para ir até à Chamarra cerca de dois meses, a sua segurança foi entregue ao pelotão de milícias, formado por nativos locais, comandados pelo chefe da tabanca, Alferes Aliu Baldé e pelo sargento Samba.
Interessante a atitude so Aliu Baldé, cuja filha tive o prazer de reencontrar em 2005 no Saltinho.
Quando o meu grupo de combate recebeu ordens de partida para Buba, ele, foi a Aldeia Formosa pedir ao comandante do sub-sector para que eu ficasse em Mampatá, como enfermeiro, enquanto a minha Compª ficasse em Buba e na Chamarra (1 grupo de combate).
A solução encontrada, foi eu ser transferido para a Chamarra por troca com o colega que lá se encontrava e que seguiu para Buba, com o compromisso de eu ir duas vezes por semana a Mampatá , aproveitando as colunas que fazíamos a Aldeia Formosa.
Assim, a viatura deixava-me em Mampatá a trabalhar com o milícia que lá ficou como enfermeiro e que ia fazendo alguns curativos e no regresso voltava para a Chamarra.
Cerca de meio ano depois, coma chegada da estrada nova de Buba para Aldeia Formosa ( Quebo) a situação alterou-se muito, tendo havido a necessidade de se fixar uma Compª em Mampatá para garantir a segurança local.,
O Chefe da Tabanca, acabou, vitima dedoença em 1972. O sargento Samba faleceu em combate. Regou a sua terra querida, para a qual tinha voltado no principio da guerra, abandonando Bissau e o bem estar de um cozinheiro de hotel, para voltar ás origens e defender a sua familia.
Zé Teixeira
A "SORTE" DE IR PARA A GUERRA
Ir a “sortes” nos anos sessenta/setenta, era o abrir da porta que dava acesso a três anos de tropa na melhor das hipóteses. Quando não, eram quatro ou cinco, com uma passagem quase certa pela guerra colonial, com todos os riscos de uma guerra, para a qual, nós os mais jovens, não estávamos moralmente e psiquicamente preparados, apesar de toda uma doutrinação politica.
Guerra lá longe, em tórridas e desconhecidas terras, contra povos autóctones de estranhos costumes, conhecedores naturais do terreno que pisavam, climas (diziam) altamente doentios, armados da vontade de se verem livres da tutela, que Portugal teimava em manter, remando contra a corrente dos tempos. Vontade essa, bem alimentada pelas grandes, médias e até pequenas potencias mundiais e que só alguns teimavam em manterem-se cegos para não verem a realidade.
Começava no dia das “sortes “ o drama que afectava o mancebo (candidato a cidadão) e toda a família. A religiosidade aculturada movia de imediato as mães a fazerem uma promessa de irem a Fátima a pé se o seu menino escapasse à guerra.
Moviam-se os “cordelinhos”, quando era possível, onde entrava a presuntaria saborosa ou os contos de réis para os mais abastados, numa tentativa, tantas vezes frustrante de evitar a mobilização. A grande maioria, não possuía condições para tais aventuras e submetia-se à sua sorte aguardando com esperança que o seu menino fosse um dos poucos a quem não coubesse a infelicidade de ser sorteado com o prémio da mobilização. O tempo da recruta voava rápido. Vinha a especialidade, com a maioria a cair na malfadada especialidade de atirador – passaporte para carne para canhão.
Grande parte dos, agora, cidadãos da Pátria, partia quase de imediato, porque a guerra não sabia esperar.
Alguns ficavam um mês, dois . . .um ano.
Tempo de agonia que ia largando ao de leve o fumo da esperança de escapar, mas . . . quando menos se esperava, lá vinha o fatal convite.
Restavam uns poucos felizardos que escapavam, como que por milagre, mas desse não reza a história, como diria o Camões se lograsse viver o nosso tempo.
O tempo de espera, sobretudo depois da especialidade, era dramático. Quanto mais passava, mais alimentava a esperança de escapar.
Eu, estava comodamente em casa a gozar o meu primeiro mês de licença a oito dias da saída da escola de enfermagem da incorporação seguinte.
Sonhava já com um mês no quartel e outro de licença (a especialidade assim o permitia).
Tinha recomeçado a estudar. A tropa ia ser canja ! Eis que chega o carteiro com maldito papel da guia de marcha, não para Coimbra, mas para Abrantes.
Abria-se nova página na minha vida. Página que levou dois anos a dobrar, que ainda não está totalmente escrita, tantas foram as marcas que deixou. Dois meses de preparação na técnica guerrilheira e anti-terrorista, (será correcto afirmar isto?) e psicológica, profundamente marcados por dúvidas e incertezas, pelos olhos inchados de uma mãe que teima em sorrir para esconder as lágrimas que lhe varrem o coração e depois o embarque para um mundo desconhecido, cuja terra pisei pela primeira vez em S. Vicente no Cacheu.
Do “antes” ficaram alguns resquícios de poesia, forma subtil que encontrei para espantar os fantasmas. Do “depois” a história que fale.
MARCHA PARA A GUERRA
Estava no campo,
Regando o milho,
Seguido o trilho,
Da vida vivida,
Sempre a trabalhar.
Da tropa, de folga.
Bailava a esperança.
De não ir ao Ultramar.
Ai que sorte a minha !
Ver os outros a marchar,
E eu a ficar.
O Carteiro chegou.
À porta bateu.
Um coração de mãe estremeceu.
Maldito papel,
Que na mão trazia.
O seu filho ia roubar.
Correu para o campo,
As lágrimas nos olhos.
A guerra veio-te chamar.
Ai que sorte a minha!
Ver os outros a ficar
E eu a marchar.
Meti na sacola,
Um bocado de pão.
Estendi a mão,
Dei muitos abraços.
Parti a cantar.
Ai que sorte a minha
Ver os outros a ficar
E . . . eu a marchar.
CARNE PARA CANHAO
Lá no Quartel,
Que em Abrantes ficava,
Comecei a aprender
Como se matava.
De canhota ao ombro,
Ouvido apurado
Grita o Capitão.
O Turra é como um ladrão.
Ele vem de qualquer lado.
A comida era boa,
Refeição abonada.
Parti para manobras,
Logo de madrugada.
Gritava bem alto
Este é o meu fado,
Carne para canhão.
O Turra é como um ladrão.
Ele vem de qualquer lado.
A noite chegava,
Serena e calma.
Triste como a noite,
Ficava a minha alma. Gritava bem alto,
Este é o meu fado.
O turra é como um ladrão
Ele vem de qualquer lado.
AMOR EM TEMPO DE GUERRA
Ver-te chegar à minha vida, amor
É sofrer.
Por saber que para a guerra vou.
Dizem que a Pátria me chama. J
á cá não estou para a semana.
Tu que nesta aventura quiseste entrar,
Acreditas no futuro ?
Estranha forma de amar.
Estranha forma de ser.
A razão do meu viver.
De lutar, Para voltar direito.
Escorreito.
Voltarei.
Gritei, na despedida, lembras-te ?
Quando o comboio apitava.
Um corpo morto, ele levava,
Ficava contigo o coração.
Sentado no degrau da Estação.
Enquanto me interrogava.
Que mundo vou conhecer ?
Que Pátria vou defender ?
Será que terei de matar. para viver ...
E regressar Direito. Escorreito.
Estranha forma de ser,
O desafio aceitar.
Dois anos tu vais ficar.
Tu e eu a sofrer.
Ambos vamos sonhar.
Estranha forma de amar.
A razão do meu viver
De lutar para voltar Direito.
Escorreito…
Zé Teixeira